segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Bolhando

Ontem estava em estado de letargia. Assim, quietinha fugidia do mundo que chamam de realidade. Qualquer distração me prendia. Fácil assim ó. Era só fixar o olhar na distração que logo pairava no ar, feito bolha de sabão. Que delícia. Não que eu desgoste do meu chão. Nada disso, meu caro. Vivo de viver, juro. Mas tem horas em que quero descansar as pernas. Só isso, viu?

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Voltei

Onde está a flor que esqueci de regar?
Sim, porque plantei a semente, adubei a terra.
E irriguei o vaso.
Foram dias que viraram meses.
A flor brotou suave. Cresceu perfumada e vermelha.
Ficou feliz comigo.
Depois de muita prosa, eu também estava afortunada, confesso.
Então vieram tempestades.
Nem assim, deixei de banhar minha florzinha.
Que se mantinha ali, forte e próspera em sua vida de flor.
Mas afastei-me um dia.
E ela, sozinha, teve mesmo nada por companhia.
Acho que não viveu de ar a pobre.
Perdi-me no tempo etéreo que tudo leva.
E voltei somente agora. Ávida.
Ela não está aqui.
Nem exasperada. Nem nada.
Desapareceu, minha linda.
Padeceu?
Onde está a flor que esqueci de regar.
Se não secou e nem morreu?


Estive ausente por um longo inverno. Refloresço agora.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Restos

O que me resta se não ficar aqui, sentada, com as pernas encolhidas e o vestido vermelho que mais gosto molhado pelas lágrimas? Nada. A não ser um resquício de mim. Que é nada. Nada vestida de vermelho. Sobrevivo dessa agonia. Sim, porque é o que me resta. O que mais posso fazer? Responda! Não quero mais ser sustentável, porque os pretextos se perderam. Sou ideologia cansada. Um complicado sistema de idéias. Idéias secas. Tornei-me paliativa? Sim. Não há mais cor de vontade em mim. A não ser o vestido vermelho que me rende. O tudo agora é nada. A vida partiu-se. A morte ainda não veio. Estou por um fio. Um fio que nada tece. Um fio de nada. Frágil, arrebenta. Isso é o que me tornei. E, olha, não adianta me olhar com esses olhos incrédulos. Não me importo com seu olhar. Nem vejo você, sabia? Apenas sinto o seu cheiro. E já fico nauseada. Isso mesmo. Tenho náusea de gente. Quero apodrecer aqui. Sozinha. Eu, com o pouco que resta. Não quero ajuda. Piedade, pode até sentir. Nem indignada fico. Sou indiferente aos sentidos alheios. Emoções não me tocam. Pode rir, também, se quiser. Não me importo. E depois de rir bastante, me deixe sozinha, com o meu vestido vermelho. Aqui, para o não morrer.

sábado, 9 de agosto de 2008

Tempos de fada

Antes mesmo de entender, já se apaixonara. Pequena e despreocupada, sentava no degrau da cozinha e abria o jornal. Os olhinhos brilhavam de curiosidade. Acompanhavam os contornos intrigantes das letras estampadas, imaginando o que aqueles desenhos significavam. Tentava decifrar. Concebia histórias. Ainda não sabia, mas já sonhava com fadas. Um dia aprendeu e descobriu seu tesouro. Uma aventura incomparável. Agora poderia criar seus próprios mistérios. Foi tão fácil, que desconfiaram dela. Então foi pra escola e lá divertia-se com suas novas bonecas: os livros da biblioteca. Encantou-se com as cores das milhões de possibilidades encaixadas em estantes e mais estantes. Havia muito a ser encontrado. Sentiu o arrepio de contentamento de criança quando ganha presente. Mas não era seu aniversário.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Sem volta

Olha, foi assim. Juro. Cheguei lá depois da hora marcada e encontrei o cara sentado no seu lugar. Sabia que estava atrasada, mas nunca imaginei que você iria embora. Desculpe. Mas fiquei puta da vida. Custava esperar um pouco? O trânsito estava um inferno, demorei pra encontrar um lugar pra estacionar a merda do carro. Me molhei com a chuva fina. Cheguei aqui irritada e não te encontrei. Pô. Só atrasei vinte minutos. Pensa que não sofri quando percebi que não ia conseguir chegar na hora marcada? Detesto atrasar, você sabe. Odeio descumprir acordos. Sou certinha com essas coisas. Tão certinha que até irrita, você sempre diz. E mesmo assim não me esperou. Sacana, você. A gente já não anda bem. Amor já virou relacionamento. E agora estamos beirando uma relação. Ô palavrinha seca essa: relação. Relação sexual, então, eu abomino. Parece experiência de laboratório. Mas antes isso do que nada, né? Porque ultimamente, nem isso, meu querido, nem isso. Sabe, tô começando a gostar de você não ter me esperado. Ia ser mais uma conversa chata sobre a nossa, argh, relação. Por que a gente tá prolongando essa coisa? Bem, eu já estava dando meia volta pra ir até a sua casa te dizer, calmamente, que estava tudo terminado, que melhor acabar agora, com alguma dignidade. Poderíamos ser amigos, sim, por que não? Foi aí, bem aí nesse momentinho de lucidez e determinação, que o cara se levantou. Que cara? O que eu disse que estava sentado no seu lugar. Bem no seu lugar. Ele se levantou e me encarou. Olhou pra mim como você, um dia, também olhou. Bem antes de virar relação. Eu não entendi nada. Mas não consegui desviar o olhar. Fiquei olhando pros olhos do cara, que olhava pros meus. Sabe assim, sem fim? Eu não sei dizer como aconteceu. Nem quando, nem por quanto tempo. Não me sinto culpada, porque juro, não era eu. Não sou disso. Sempre fui tímida. Nunca tive muitos namorados. Nunca sequer beijei em público assim, à luz do dia, no meio de um restaurante. Mas o cara me puxou. Envolveu-me em braços decididos. Um cheiro de barba anestesiou tudo, de repente. Me fez carne. E eu me rendi, assim, sem medo. Me doei, assim, fácil, fácil. A boca dele (boca mesmo, nada de lábios: boca) rasgou-se na minha. E a minha, ah, abandonou-se na dele. Ludibriada. Boca de boca na boca. Aí. Aí você chegou. Mais atrasado que eu, agora eu sei. E não está acreditando em nada disso que estou te contando. Não te culpo. Eu também não acreditaria. Mas olha, foi assim sim, eu juro. Não posso fazer mais nada. Já aconteceu. Minha pele já tá comprometida. Minha carne já tá marcada. Assim, sem volta.

domingo, 8 de junho de 2008

No tom do outono

É preciso dizer que não vou falar de flores. Nem hoje e por muito tempo. Estou vivendo em outra estação. Ainda não é chegado o meu tempo frutífero de primavera. Creio estar no outono. Preparando-me para um rigoroso inverno. Mas sem o medo de antes. Agora conheço os meus pés frios. E arrumei uma galocha. Estou recolhendo algumas folhas secas e vou guardá-las como recordação desta temporada. Deixo algumas aqui para os que me visitarem. Mas flores... Desculpe, meu caro. Não é mesmo chegado o meu tempo.
Minha temporada agora é de seca. Uma secura branca e pacífica. Sim, há fertilidade em mim. Há adubo. Mas não há hora para o cultivo. Meus minutos estão contados, como dinheiro em tempo de recessão. São preciosos os meus segundos. Quando o inverno chegar, estarei mais forte e disponível. Não precisarei mais deste relógio impossível. E então estarei radiante para o verão. Esquentarei minhas letras. Plantarei minhas sementes coloridas. Condimentarei em novas línguas. E me tornarei, novamente, primavera de mim. Pra ti.

sábado, 31 de maio de 2008

purple

Cheguei tarde.
Você já havia partido.
Atrasei-me pois pensei ter entendido.
As palavras tinham significado de dicionário.

Eu não sentia. Apenas entendia.

E isso, acredite, fez a diferença.
Provocou esse maldito desencontro.
E acabou nessa meia vida mal vivida.
Agora só tenho você em sonho.
Nunca mais e pra sempre.
Coroado e glorificado.
Eternizado.
Ingênuo devaneio meu.
Deslumbre da minha quietude.
Por isso é eterno, não é?
Porque quem fica em sonho, tudo pode.
Responda, nem que seja na minha imaginação.
Mas responda, por favor.
Você volta?
Não me vire as costas.
Não em sonho.
Me fascina com seu verde no delírio da noite mal dormida.
Seja a ilusão da minha vida.
A minha quimera apaixonada.
Seja a miragem nos dias de areia nos olhos.
Quando as vozes alheias me arderem os ouvidos.
Seja minha utopia.
Minha dor e minha delícia.
Mas seja.
Esteja pra mim. Deseja comigo. Lateja em mim.
Me realiza.
Me finda com sua felicidade fantasiosa.
E me veja com os meus olhos de fantasia.
Uma só vez.
De verdade ou não.
Vida ou não.
Eu e você, ou não.
Você.
Sempre você.
Sua essência em meu coma.

domingo, 25 de maio de 2008

Chega de viagens no tempo

Tenho uma máquina do tempo. Aqui mesmo, do meu lado. Mas me deixa muito nervosa: ela só funciona quando quer. Não tenho controle nenhum sobre suas idas e vindas.
Outra coisa: difícil viajar pro futuro. Ela ocasionalmente me leva alguns segundos à frente. Mas pisco os olhos e volto pra cá, pro presente.
Pro passado ela volta com freqüência. Devolve-me sentimentos escondidos.
Alegra-me e me assombra essa máquina...
Sabe de uma coisa? Vou me livrar dela. Jogá-la em um buraco bem fundo.
Desfazer-me de lembranças? Jamais, são meus tesouros. Mas quero apenas guardá-las. Não revivê-las.
E, sobre o futuro... Quando ele tornar-se meu presente, aí sim eu vou vivê-lo.
E depois, quando então tornar-se meu passado... Aí eu te conto.
Sem medo.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Para Ana e André

Tem amor que acontece.
Simples assim: amor de verdade.
Chega complacente.
Despretensioso, num breve olhar de sol nascente.
E torna-se quente de repente.
Sorrateiro, instala-se.
Traça seu enredo, ali, no primeiro beijo.
Sim, veio pra ficar.
Envolve, destoa e entoa.
E fica!
Tece a própria teia e não tem hora pra ser.
Apenas é. Simples assim: amor de verdade.
Amor consumado no amor.
Feito de amor.
Regado no amor.
Amor que gera amor.
Dribla o tempo.
E surpreende, dia-a-dia.
Feliz em ser o que é.
Em amar só de amor.
Em renovar-se no amor.
Pra celebrar esse amor.
Simples assim: amor de verdade.

* Para Ana e André, despretensiosamente.
Estou longe de ser romântica. E ainda concordo com Fernando Pessoa: todas as cartas de amor são ridículas... Mas falar de Ana e André sem ousar no amor, não é falar de Ana e André... É assim que os vejo, que os sinto. Assim os admiro.
Esta foi, portanto, uma singela homenagem a uma história de amor de verdade, que será oficializada amanhã. Uma homenagem a duas pessoas que se amam na simplicidade do cotidiano e que sei, se apaixonam todos os dias. Sempre.
À minha eterna e querida amiga Ana Cláudia, menina romântica que se tornou uma mulher apaixonada pela vida. E que junto ao André, construiu uma história linda, abençoada por anjos: Helena e Isabela!

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Sem flores

Ela percebeu, enfim, que não receberia flores naquele dia que até então acreditava ser especial. Entendeu que não era assim tão especial quanto desejava. Não era, oras. E ponto final. Entendeu que de amor não compreendia. Apenas sentia. Queria ser amada como na época em que ainda sonhava. Porque trazia consigo um pedacinho daquele sonho de menina romântica. E ele era renovado todo santo dia, sem que ninguém suspeitasse.
Queria muito ter o carinho daquele amor. Porque havia sim, muito, muito amor ali. Mas não do jeito que sonhara: queria ser surpreendida ao nascer do sol, ganhar estrelas de presente, se deliciar em beijos pretensiosos e se embebedar de uma paixão embarcada no clamor. Não precisava ser assim todo dia. Só de vez em quando. Mas tinha que existir aquele amor encomendado.
Ela ainda não sabia que amor é amor. Simples assim. Completo em si. Sem saber disso, e ainda sonhando com um amor inventado, ela não conseguia ser feliz. Sentou-se, desolada, na cadeira que rangia sua dor de desamor. Estava desacordada no que as pessoas insistiam em dizer que era autêntico. Não era, oras. Não pra ela, que ainda sentia vontade de brincar de voar. Queria mais da vida. Queria mais vida. Entendeu agora?
Seu olhar foi arremessado na ausência. Suas mãos se abraçaram, entregues à solidão encarnada. E as pernas balançavam no ar, numa tentativa equivocada de encontrar o nada. E se jogar. Mas nunca se jogaria. Era uma menina medrosa. Tinha medo de perder o pouco que colecionara. Tinha medo de descobrir que seu amor não valia nada. Tinha medo de encontrar. E de não encontrar também. Tinha muito medo ali com ela. Sua prisão estava pronta e bem trancada. Então ela chorou. Mas nem isso adiantou. Nada aconteceu. Tudo ficou igual depois do choro compassivo dela.
Foi quando ela começou a falar. Falou, falou, falou. Despejou muitas palavras. Ela era bilíngüe, aquela menina. Falava duas línguas raras. Poucos entendiam. Mas os que compreenderam disseram que ela tem o dom de encantar quando começa a pronunciar aquelas palavras difíceis.
Ela ficou feliz, enfim, porque alguém entendeu sua dor. Sua ânsia de amor de sonho. De um sonho precioso e bem guardado. De uma quimera que encanta porque tem magia de criança. Depois disso, ela levantou-se da cadeira que rangia e resolveu voltar. Mesmo sem as flores que queria tanto ganhar naquele dia tão especial.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Palavras difíceis

Estou muito cansada pra argumentar, discutir, debater, aventar, controverter, agitar. Hoje também não quero metáforas. Tampouco figuras exacerbadas. Mas palavras difíceis são bem-vindas. Porque hoje estou inexorável. Não quero falar em sentir. Quero apenas minutar. Digitar as letras sem pactos. Com nenhuma comiseração. Estou assim. Em branco. Acho que estou documento hoje. Documento rápido. Sem burocracia que apoquenta. Sem meias-verdades. Direto. É assim que quero pra mim hoje. Tudo célere. Certeiro. Mas palavras difíceis são bem-vindas, eu friso. Pra muitas vezes ficar sem entender. Mesmo que seja rápido e eficaz. Porque nem sempre entender é o caminho. Muitas vezes prefiro o abstruso. Porque não sei o que significa ou expressa. Está apenas ali: a palavra jogada, hirsuta e destoada. Esperando ser, quem sabe, um dia. Ou não.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Simples assim

Não conseguia escrever com a alma.
E, juro, morava com as estrelas.
Sentia, sorria, consumia.
Voava, chorava, amava.
Meditava, derramava, dilacerava.
Esvaziava. Inventava.
E palpitava.
Até fingia que escrevia.
E experimentava.
Mas depois... Depois nada, coitada.
A noite chegava, após do dia.
E nada. NADA.
Ela ainda não sabia que apenas bastava.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sem mais nada

Caiu. Estava distraída, observando borboletas. Não viu o buraco. Mas ele a viu. Engoliu-a de repente. Não houve tempo nem para o grito. Assustada, levantou-se rápido. Olhos arregalados e boca trêmula. Tentou escalar. Mas a terra não era firme. Suas unhas ficaram sujas. Sua roupa empoeirada. Não tentou uma segunda vez. Sua pele entorpeceu-se. Sentiu náuseas ao constatar que ia ser muito difícil sair dali. O pior é que estava cansada. Quando caiu, estava voltando do trabalho, depois de um longo dia de luta. Só queria chegar em casa e sentir o aconchego de sua cama quente, depois de um banho mais quente ainda. Sentir o cheiro adocicado da sua criança. O beijo reconfortante de seu homem. E fora engolida por aquele buraco fétido. Escuro. Sentou-se. Estava com fome. Tinha chiclete na bolsa. Sua bolsa a salvaria! Sim, o celular! Procurou-o no meio de todas as suas intermináveis tralhas. Ah, aqui está. Começou a discar, afoita, quando o maldito aparelho desligou sozinho. A bateria! Acabou a bateria. “Bem que me avisaram pra carregar. Mas eu sempre me esqueço”. Voltou, então, ao chiclete. Tinha de todos os sabores possíveis. Era uma mulher de sabores. Escolheu o de frutas vermelhas. Estava escurecendo e ela ali, naquele buraco, conformada, deliciando-se com um sabor doce-azedo artificial. Estava com medo. Mas não tinha energia para fazer mais nada. Não queria tentar escalar novamente. Não queria gritar. Não queria mais nada. Simplesmente resolveu chorar e dormir. Ali, na terra mesmo. Ao relento. Na noite fria que viria. Com medo sim. “Mas e daí?”. Acomodou-se melhor. Fez um montinho de terra de travesseiro. Tirou da bolsa um casaquinho leve que sempre carregava. Abriu um guarda-chuva sobre sua cabeça, a fim de proteger-se da friagem que começara. E dormiu, enfim. Sem mais nada.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Havia sim

Havia uma rua de árvores frondosas e casas bonitas. Havia uma casa amarela. Antiga, mas bem cuidada. De janelas grandes. Com floreiras. E flores. Coloridas. Havia um portão de ferro que gritava quando alguém o abria. Havia uma varanda ampla e iluminada. Com cadeiras de madeira, mas confortáveis. Com samambaias alegres. Confiáveis. Havia uma porta de duas faces. E estavam, ambas, abertas. Então havia uma sala bonita. Móveis de outros tempos. Tudo limpo. Muito lindo. Detalhes não faltavam ali. Relicários, porcelana, delicadas toalhinhas de crochê. Porta-retratos cheios de família. Com sorrisos e muita história. Vidas ali, na minha cara, dizendo “vem ser feliz com a gente”. Havia um sofá cor de baunilha com almofadas coloridas. Uma mesa redonda de madeira escura. Uma fruteira com frutas frescas bem escolhidas. Havia quadros de cavalos e casas de fazenda nas paredes beges. Havia um lustre de cristal. Os raios de sol chegavam pela janela e corriam para os pequenos cristais do lustre, espalhando brilhos coloridos pela sala. Fui atingida por um brilho azul quando um aroma aconchegante de bolo de fubá invadiu subitamente minhas narinas, avisando que era hora de ser feliz. Me puxou para a cozinha. Havia um fogão a lenha. Leite fresquinho. Fervendo. E doce de leito no tacho. Havia uma geladeira antiga, com barulho de infância. Havia uma mesa bonita, com toalha colorida de avó feliz. Café no bule e xícaras pintadas a mão. Biscoitos de polvilho trazidos pela tia. Havia mingau de aveia. Bolinhos de chuva com canela e açúcar. Quentinhos. E o bolo de fubá, claro. Havia um assovio. Assoviava uma melodia alegre e doce. Havia um vestido estampado. Cabelos de algodão. Havia também um sorriso. Um sorriso de mel. Olhos negros puxadinhos. Havia braços quentes. Abertos e entendidos. Para o melhor abraço. Havia um colo macio, florido de compreensão. Um beijo molhado no amor incondicional. Um arrepio, eu senti. Havia uma benção abençoada por Deus. Sabedoria concedida. Afago milagroso. Havia sim, muita saudade ali.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Arrebatamento

Foi por pouco. Escondi-me atrás do muro baixo da casa branca de janelas azuis. Parece que ela se foi. Será? Elas sempre voltam. E eu ainda sinto as agulhas do medo. Melhor ficar mais um pouco aqui. Cautela. Sempre a cautela. Bom, vou aproveitar e respirar o ar desse jardim de rosas vermelhas. Estou aqui encolhida. Vou esticar as pernas e descansar meu corpo por um momento. Corri muito até encontrar esse pequeno esconderijo. Ainda bem que é um jardim vermelho. Da última vez me escondi em um terreno sujo e abandonado. Tão abandonado que até os ratos haviam fugido. E eu tive que sobreviver apenas de alivio. Nada mais. Mas agora estava em um jardim com flores vermelhas, grama verde molhada, borboletas coloridas e pássaros mágicos. Tinha até pássaros, meu Deus! E eles voavam alto. Por um minuto, mirei meu olhar determinado no vôo de um passarinho azul, que voou tão alto que seu azul se fundiu ao azul infinito do céu. Foi a maior experiência de liberdade que já presenciei. Que presente! Fez-me recordar que sou alada. Então fiquei feliz, até tentar fazer as minhas asas se moverem. Depois de alguns longos minutos de esforço: nada. Elas atrofiaram com a falta de uso. O medo atrofiou minhas asas grandes e bonitas. Nunca as usei. Fiquei triste ao lembrar que tinha asas e não podia voar. Agora então, que havia bruxas no meu encalço, seriam tão úteis. Nenhuma bruxa seria páreo pra mim. Mas as asas nem abriam, quanto mais voar... Quem sabe um dia, com uma boa fisioterapia, elas voltem ao seu ofício: o de me levar para as nuvens. Para lugares jamais visitados e que eu sei, têm lugar de honra guardado pra mim. Tem gente boa me esperando. Um dia, quem sabe... Mas agora não me resta outra saída se não enxugar as lágrimas e esperar um pouco encolhida sob aquele muro baixo. Eu estou presa em um lugar lindo e aconchegante, onde poderia até ser feliz, mas não podia me mover, a não ser rastejando junto aos insetos. Isso mesmo, tornei-me um ser rastejante daquele paraíso. Foi nesse momento que ele apareceu. Era alto e bonito. E estava em pé, segurando algumas rosas vermelhas recém colhidas. Uma delas havia machucado sua mão branca. Um espinho pontiagudo. Ele parecia não sentir dor. Não percebia o sangue. Olhou pra mim curioso. Deve ter pensado o que essa mulher está fazendo no meu jardim? E ainda encolhida no canto, junto ao muro baixo... Então se aproximou devagar. Não perguntou nada. Apenas estendeu a mão que não estava sangrando. Seus olhos eram de pai. Mas recusei, receosa, com um leve balançar da cabeça. Ela agachou-se. Tocou-me o rosto com cuidado e disse, num tom azul de falar, que não precisava mais ter medo. “Vou curar suas asas”. Meu Deus, o que era aquilo? Aquele homem vestido de anjo ali, pronto pra me salvar de minhas bruxas infernais. Senti um profundo desejo de sorrir e abraçá-lo. Entregar-me a ele, por completo. Ser o tudo. Ver a vida. Sentir, enfim, sentir a plenitude. Mas não foi isso o que fiz. Tenho até vergonha de contar. Mas mais uma vez me deixei seduzir pelo medo. Fui agarrada por ele. Apoderou-se de mim, assim que percebeu o que acontecia ali. E eu já estava tão acostumada com seus argumentos sórdidos, que ele nem precisou se esforçar. E, tomada daquele sentimento atenuante e infeliz, encolhi-me e apertei os olhos. Lágrimas escorreram. Então, de olhos fechados levantei-me. Apalpando o muro, pulei para a rua deserta e corri sem rumo. Pronta pra encontrar mais uma bruxa. Mas aquele anjo não desistiu de mim. Assim que olhei para o céu. Percebi suas asas grandes sobre minha cabeça. Senti-me contente por ele não ter desistido de mim. E foi naquele minuto quente que comecei a experimentar um pequeno formigamento em uma de minhas asas. Sorri, então. Mesmo avistando de longe uma das minhas bruxas. Resolvi parar de correr. Não me escondi. Tomada de uma coragem nova, fui até a bruxa devagar, com calma. Ela me olhou assustada, quem diria... Então a convidei pra um café, ali no bar da esquina mesmo. E, acredita que ela aceitou? Tivemos uma conversa tão boa e demos tantas risadas juntas, que de repente achei que ela tinha cara de fada. E prometeu me apresentar para a sua turma. Assim que nos despedimos com um abraço verdadeiro, depois de trocarmos e-mail e celular (ela tem até um blog!!!), abri as asas, com naturalidade. E voei, pela primeira vez.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Era uma vez nos anos 80

Éramos uma turma. Amigas-irmãs. Cúmplices comprometidas, metidas e destemidas. Meninas desvendando a galáxia e partilhando estrelas. Histórias encantadas. Contos de fadas escritos em um diário adolescente. Sorrisos felizes, lágrimas sinceras e sonhos acordados. Emoções coloridas compartilhadas em descobertas singulares. Delírios e colírios. Nascer do sol, sol poente e festa ao luar. Um mundo mágico e fugaz: presente da lua. Drinks ao piano, novos amigos. Dançar no fim de semana. Amores efêmeros com sabor de eterno enquanto dure. Estepolias fabulosas. Riso, choro, frio, calor, bonito, feio, claro, escuro, doce, amargo. Sentimentos recortados e costurados: pedaços preciosos de pano tecido com o melhor de nosso algodão. Colcha de retalhos, guardada e amarrotada, mas que ainda esquenta os meus frios. Faça chuva, faça sol.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Bilhete

Olha, minha menina, um dia eu volto. Fique tranqüila. Não ficará sozinha. Prometo. Tem suas bonecas de louça e suas balas coloridas. Fique calma, virei visitar os seus sonhos. Dia sim, dia não. Pra não ficar mal acostumada. Ouvirás minha voz. Acredite, cantarei pra você nas manhãs de domingo. Basta se concentrar. Sentirá até o meu perfume quando tiver saudade. Juro. Deixo-te um beijo. Guarda em uma caixinha. E não mostre a mais ninguém. É o nosso segredo. Somos cúmplices agora. E quando puder vir comigo, eu virei te buscar. Mas, hoje, minha pequena, hoje você não suportaria. Suas asas nem apontaram. Pare com isso. Enxugue as lágrimas e confie em mim. Se digo que volto, eu volto. E ponto final.
Já disse que te amo? Guarda isso também.

sábado, 29 de março de 2008

Sentença

Reinava ali o perfume reconfortante de chá de camomila. Um aroma molhado que abrandava a agonia do pecado fresco. Vez ou outra, aquele tão desejado bálsamo da infusão era agredido pelo fedor da culpa. Eram intermináveis segundos malcheirosos. Povoados por lágrimas pesadas. Tão raivosas quanto o mar em noite de lua cheia. Quando até a maresia ficava tensa e fervia. Alastrava minhas narinas com seu pesado cheiro condimentado. Doíam até os olhos os malditos olores das lágrimas salgadas. Eu estava sentada na velha poltrona de meu pequeno apartamento. Sozinha. Segurando a xícara de porcelana pintada a mão pela minha avó. A xícara cheia do chá. De Camomila. Esquentava as minhas mãos de fada. Fada má. Não queria saborear o chá. Apenas me acomodar em sua fragrância de colo. O colo da avó que pintou a xícara que agora continha o chá. O chá que fundia as nossas almas. A minha e a da minha avó. Fiquei ali, estrategicamente estática. Congelada em mim. Até esfriar o chá. Até o aroma se esgotar e o ar voltar ao seu estágio inodoro de vida estéril. Expirava aquele doce perfume quente com toda a energia de meus pulmões insaciáveis. Não em busca de ar, mas do bálsamo. A vida. Então esfriou. O cheiro esvaiu-se. Pude sentir a fetidez impregnada em mim. Intensa e indesejável. Fui para a cozinha. Despi-me, nauseada pelo cheiro fétido da culpa. Queimei as roupas no microondas, que deu um estouro e pegou fogo. O apartamento foi tomado pelo cheiro seco de fio fundido. E pano cremado. Por um instante senti o perfume delicado da alegria: me livrei do cheiro dolorido das roupas denunciadas. Gostei de experimentar um odor melhor que o meu. Nua, fiquei estirada no chão frio da cozinha com as narinas atentas àquele cheiro pontudo e fugidio. E mais uma vez, adormeci sem culpa.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A quatro mãos


A quatro mãos: este foi o nome que escolhemos, eu e Friendlyone, para o blog que inauguramos esta semana! Isso mesmo, agora somos "sócias"!!!

Neste novo espaço vamos dividir a narrativa de um conto, entitulado "Casa de bonecas", que está sendo escrito sob dois olhares diferentes e quatro mãos ávidas.

O primeiro capítulo já foi postado...


http://luci-friendlyone.blogspot.com

Bjo, bjo


Luci :)))

segunda-feira, 17 de março de 2008

Por favor, um sonho!

Sentei-me na calçada. Era uma rua bonita, de sobrados coloridos, crianças correndo em risadas doces e picolés derretidos. Pipas alegravam ainda mais o céu de baunilha. Havia, na esquina, uma padaria charmosa e antiga, com os melhores confeitos já confeitados e enfeitados. Lembravam-me a Fantástica Fábrica de Chocolate, mas da primeira versão do filme, quando eu ainda era uma menina feita de algodão doce. Eu adorava me lambuzar com o sonho da padaria da esquina. Tinha grande, pequeno e médio. De chocolate, baunilha, morango e tradicional. Eu gostava do tradicional médio. E essa era a minha sina. Sentava lá, na sarjeta, com o meu sonho tradicional médio. Fechava os olhos para concentrar-me apenas no paladar. Ah, o paladar. O melhor dos sentidos, sem dúvida. Se pudesse, tampava até os ouvidos. Ficaria cega e surda naquele doce momento. Queria saborear. Só. Sentir com a boca. A língua. Guardar todas as inúmeras sensações delicadas e fumegantes. Porque açúcar engorda, mas me faz feliz. E eu gostava tanto do tradicional médio que não me permitia experimentar novas versões. Até tentava, de vez em quando, na expectativa de outras terras degustativas. Quem sabe até mais agradáveis. Mas não conseguia. Era mais forte que eu. Aquela profusão delicada de sabores já me fazia feliz. Impedia-me de tentar outros gostos. Era tão feliz com o tradicional médio. Tão açucarada. Até as crianças da rua riam de minha cara de céu quando estava me deliciando com meu doce preferido. A Aninha, por exemplo. Ela tinha apenas nove anos e já experimentara todos os sabores possíveis da padaria da esquina. E ainda sugerira à dona Doca que criasse algo novo. Corajosa desbravadora essa menina. Eu? Eu bem que tentava. Todo sábado à tarde, por volta das 17h, depois de tirar a minha religiosa soneca, calçava o meu tênis azul e ia até a padaria da dona Doca. E lá, nem precisava pedir, que ela já havia embrulhado o meu sonho tradicional médio. A Aninha, muitas vezes, aparecia por lá e ria de mim, novamente. Depois, pedia um doce diferente – certa vez quis profiteroles de banana. Espantei-me com tanta inovação. Como podia? Tão novinha e cheia de sabores. A menina também me acompanhava até a sarjeta em frente a minha casa e sentava-se comigo. Ela, com seus sabores difusores. Eu com a minha tradição encarnada. Sempre me oferecia um pedaço de seu doce, mas eu recusava, prontamente. Como poderia? Ia estragar o meu paladar. Ia ferir meus princípios degustativos de ser. Hoje, estou aqui sentada na mesma sarjeta. São 17h40 e estou estranha. Não sei o que sentir. Nem o que fazer. A dona Doca, da padaria, ficou doente e não fez os doces hoje. Como pode? A Aninha ficou com pena e me trouxe uma bomba de chocolate da padaria da rua de cima, que nunca entrei na vida. Estou olhando pra essa bomba há 20 minutos. Mas não tenho coragem. Se o gosto for ruim, tudo bem. Mas e se gostar?

sexta-feira, 14 de março de 2008

Pra colorir

Olhei pela última vez para aqueles olhos brancos. Beijei seus cachos descoloridos e disse adeus para as flores opacas deixadas sobre a mesa, agora inúteis. Então saí, sem piscar. Fechei a porta. Fechei. Mesmo. Segurei a maçaneta descascada. Puxei. Ela abriu. Passei. Fechei. Soltei. Tudo com calma. Na lentidão que eu precisava. Senti, logo em seguida, agora mais rápido, o meu corpo caindo. Estava tão pesado assim? Sim, estava. E eu nem sabia até agora. Leve, então, olhei pra cima, e pintei o céu de azul. Azul mesmo. Contemplei o dia, que me acolheu. Seja bem-vinda. O vento também veio me receber saltitante. Deixei que ele me mostrasse o caminho. A alameda estava cololorindo, passo-a-passo. O céu entorpecia no azul macio. E as árvores floriam amarelas. Felizes com o meu destino. Tirei os sapatos de salto alto. Pés brancos no chão vermelho. Inteiros. Palma no palmo. Há quanto tempo meus pés não tocavam o chão? Um senhor estava passando e me olhou desapontado. Deve ter pensado o que uma mulher tão bem vestida estava fazendo na rua, sem sapatos. Tive vontade de rir. Que bom, eu queria rir. Há quanto tempo não ria de mim? Senti, enfim, o asfalto avermelhar os meus pés. Ficou tão quente que precisei correr. Corri sem saber onde. Sem entender como. Sem ver o quando. O vento laranja inspirando meu corpo e suspirando meus cabelos, agora livres, esvoaçados e despreocupados com os nós. Então eu parei. Quase sem fôlego. Meu peito ardia. Que calor. Calor de outono. Vermelho por dentro e azul aqui fora. Gela, esquenta, arde, dói. Prazer roxo. Entrei num parque. E vi uma copa amarela. Novamente as flores amarelas. Agora floriam pra mim, convidando para que me acomodasse sob os galhos de sua árvore verde. Sentei-me ali. Tirei o casaco cor pastel. Embaixo, outra blusa incolor. Jurei que aboliria as cores incolores. Tinha o direito ao berro das cores vivas. Estava fresco e azulado ali. Tive vontade de ser feliz pra sempre. Viver, simplesmente, porque aquela copa podia ser verde ou amarela. Porque está chovendo agora. Porque o sol ainda está laranja. Viu só? Há todas as possibilidades, bem aqui. Tem sol e tá chovendo. A chuva não se incomodou. Simplesmente se deixou chover, em tons brilhantes. O sol gostou e latejou vermelho. A chuva me molhou. O sol me secou. Isso sim é viver.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Mensagem importante...


Pessoas... Expandi as minhas fronteiras... Criei outro blog... dá pra acreditar?...

Ontem, conversando com a minha querida amiga Friendlyone sobre os capítulos desta história que vinha publicando (últimos dois posts), ela me aconselhou a criar um espaço especialmente para este fim, já que eu poderia me sentir presa na sequência da narrativa... E assim, correria o risco de deixar de publicar outros textos enquanto não terminasse a história.
Então decidi criar o "Minhas reticências", onde publicarei os capítulos de minhas historietas... Quem estiver acompanhando os dois últimos posts, terá que migrar para o "Minhas reticências" para continuar a história.
Convido a todos para conhecer esse meu novo espaço.
Agora o Sem Crase, vai continuar como sempre, sem crise!!!
Bjos....




quarta-feira, 12 de março de 2008

A segunda parte de uma provável história

Os portugueses eram os Almeida. Seu Pedro era robusto, de feição forte e marcada. Tinha poucos cabelos e um grande bigode. E falava pouco, mas que você não se engane com isso: ele dava valor às palavras. Sabia exatamente a hora certa e o lugar perfeito para encaixá-las. Dona Maria Isabel era pequena e mirrada. Tinha rugas precoces e o corpo curvado: parecia carregar um grande fardo. Usava roupas escuras e um avental eterno. Havia, ainda, na casa, dois rapazes: Antenor e Joaquim. O primeiro, o mais velho, era alto e carrancudo como o pai, mas dono de uma beleza peculiar: apesar de um nariz desproporcional, seu rosto era iluminado. Estudava para ser doutor na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O mais novo, Joaquim, era forte e alegre. Tinha um sorriso verdadeiro, cabelos macios e olhos que encantavam. Vestia-se impecavelmente e trabalhava com o pai nos negócios da família. ...E fazia sucesso com as moçoilas da cidade.
Eles estavam esperando por Stella na estação: Dona Isabel e Joaquim. Ela foi uma das últimas a deixar o vagão. E foi recebida com um sorriso e dois apertos de mão. Poucas palavras no caminho até a casa. Melhor assim, pensou, desprotegida, aquela menina que não queria estar ali.


A primeira parte desta provável história está no post abaixo.
Se haverá a terceira parte? Tomara!

domingo, 9 de março de 2008

Apenas o começo de uma provável história

Contrariando a expectativa da menina, aquele dia amanhecera claro e de um azul infinito. Não combinava em nada com o que ela estava vivendo – mas estava vivendo. E, por isso, seus olhos recusavam-se a abrir. Ela não queria enfrentar. Estava cansada. Uma tristeza branca invadiu seu corpo, que ficou ainda mais reticente. Meu Deus, preciso levantar. Preciso. E foi com uma energia esvaída que Stella abriu os olhos. Com uma lentidão pesada, ergueu-se da cama estreita onde passara a primeira de muitas noites que ainda viriam. O quarto era apertado para as duas camas e a pequena mesa. Mas só ela dormia ali, naquela manhã. As paredes estavam úmidas e com a pintura envelhecida. Descascava com facilidade. Não havia quadros, apenas uma janela para o mundo, com uma fresta laranja de sol nascente avisando que a vida continuava. Isso além das camas, a mesa, o teto, o piso, Stella e um vazio que não cabia naquele cômodo mofado.
Stella Teresa Rizzo havia chegado à casa dos portugueses na noite anterior. Trazia consigo uma pequena valise desbotada com algumas poucas roupas velhas. Usava um vestido não menos desbotado, sapatos surrados e empoeirados pela viagem de sua casa, na fazenda Esperança, até ali. Seus cabelos castanhos estavam emaranhados e presos em um coque. E seus olhos verdes eram opacos e despretensiosos. Ela tinha 15 anos e não sabia, ainda, a bela mulher que podia ser. Seu corpo grande e ossudo a deixava um tanto desengonçada e escondia segredos que nem ela conhecia. Seu andar era arrastado. Estava chegando àquela casa para ajudar na limpeza e se casar. Seus pais precisavam sobreviver.

Esta é uma narrativa que escrevi de supetão, há algum tempo, com a pretensão de que pudesse dar prosseguimento, mas acabei engavetando... Hoje resolvi publicar pois assim, quem sabe, consigo dar continuidade a ela, melhorá-la... E se você, meu caro, quiser palpitar, criticar, dar idéias, sugerir, até mesmo dividir essa história... Tudo tudo será muito bem vindo!

quinta-feira, 6 de março de 2008

Aquela viagem

Entrei de repente. E rápido, fechei a porta. Só assim seria possível seguir aquele caminho. Novo, tão inesperado. Desconhecido. Ante a expectativa morna de um enredo prescrito, optei por uma nova história, em que a única personagem conhecida seria eu. Não havia enredo, não havia produção. Nem mesmo direção. Havia eu. Tirei o vestido de uma vez. Mas com cuidado de mãe. Guardei-o na caixa, junto a todos aqueles apetrechos que o acompanham. Era lindo, como eu sonhara desde menina. Feito de seda, pérolas e sonhos. Mas os sonhos da menina. Não meus. Não mais. Fechei a caixa e, com cuidado, dei um laço bonito e bem feito. Acomodei-a sobre a cama junto a um bilhete curto e verdadeiro. Juntei algumas roupas na maleta vermelha. Apenas o que não poderia faltar mesmo. Queria muito uma nova biografia. Sem lembranças ultrapassadas. Prendi os cabelos em um rabo, coloquei meu jeans surrado, mas feliz. Aquele das melhores aventuras. Uma camiseta branca e meu velho e bom tênis, pra me levar para estradas distantes. Conferi os documentos, o dinheiro poupado. Peguei a bolsa, o casaco e, antes de sair, dei uma última olhada naquela linda caixa sobre a cama. Desci as escadas, o táxi já estava à minha espera. Entrei rápido no carro. Nenhum deles devia ter notado a minha ausência, pois ninguém veio atrás de mim. Para o aeroporto internacional, por favor. Era domingo e, portanto, o trânsito estava tranqüilo. A cidade parecia diferente, distante. Sentiria a falta de alguns lugares. E de algumas pessoas. Mas agora queria matar saudade apenas de mim, que não via há muito tempo. Meu corpo estava teso. Meu Deus, o que acontecerá na hora que derem por minha falta? Mas quando descobrirem, já terei alçado meu vôo. O vôo estava atrasado. Esperei na sala de embarque. Ansiosa. Precavida. Determinada. Folheei uma revista velha antes de ouvir o aviso. Chegou a hora. Agora. Não mais depois. Depois nunca mais! Agora, enfim. Não houve um só minuto, naquelas 12 exaustas horas dentro daquele avião, que eu tenha me permitido dormir. Sequer cochilar. Mesmo que quisesse. Havia uma multidão de sentimentos novos se acomodando. E sentimentos guardados estavam despertando, amarrotados. Maravilhados. E um pouco desconfiados. Senti-me invadida por um súbito prazer intenso. Decidido. E percebi então que a velha sensação de perturbação ambígua, não mais habitava ali. Não havia mais lugar pra ela. Minhas terras estavam prometidas apenas ao acaso. Sem mapas nem metas. Sem listas. Quando cheguei, anoitecia. A cidade brilhava e fui recebida por mim. Sem qualquer fantasia. E nenhum vestido rendado. Apenas eu, como nunca havia sido. Fui levada por mim para conhecer a cidade. Linda, encantadora. Surpreendente, graças a Deus. Quero ser surpreendida. Levar sustos. Ficar pasma, sabe? Fazer da vida a minha casa. O meu agora. Meu melhor presente. Depois, depois eu vejo. Por enquanto, seja apenas bem-vinda.

domingo, 2 de março de 2008

Lancinante

Pior que não ser correspondido por um grande amor é perder a capacidade de amar.
O sol estava quente e eu caminhava sem perceber. Suava. A roupa branca não marcava. Carregava muitas sacolas pesadas. As mãos, acostumadas, seguravam forte. Os pés latejavam. Entrei no primeiro restaurante que vi. Estava cansada e faminta. Passara aquela manhã fazendo compras no centro da cidade, onde podia pechinchar e conseguir algumas bagatelas. Mas jurei que seria a última vez. Ah seria! Da próxima iria mesmo ao shopping center, a maravilha do mundo moderno, com suas facilidades e confortos. Sentei-me na pequena mesa perto do ar-condicionado. Acomodei minhas sacolas. Coloquei a bolsa do lado. Esfreguei a testa. Estava melada. Tudo grudava em mim. Precisava ir ao banheiro. Mas o garçom aproximou-se. A senhora quer fazer o pedido agora ou está esperando alguém? Senhora é a sua avó, me deu vontade de responder. Sei, sei que tem todo aquele lance de que é respeitoso, mas pra mim é justamente o contrário: uma p... falta de respeito. Quando me chamam de senhora, me sinto infinitamente mais velha do que já sou. Feia, sem charme, nada atraente. Juro, acaba com o meu dia. Preferia levar uma cantada grosseira... E o rapaz, coitado, ainda pergunta se espero alguém. Agora só falta me oferecer uma salada leve, ótima pra quem precisa de uma dieta. Aí sim, completa o ciclo do acabou-de-estragar-o-meu-dia. Mas respondo educadamente, sem sorrir hein, que não espero ninguém. Não espero mesmo. Não espero nada. Graças a Deus. Esperar é ter esperança. Estar em constante expectativa. E disso me livrei há muito tempo. Esperar é uma roupa velha que não mais me serve. Ingrediente fora das minhas receitas. Item excluído do meu cardápio. Alias cadê o cardápio. Na mão do garçom, que ainda me olha, na expectativa, coitado. Deve estar me achando doida. A velha doida... Sentada sozinha em um restaurante familiar de mesas grandes, carregando todas aquelas sacolas sem ajuda e ainda tendo surtos de mudez.... Bom, deixe-me ver. Quero uma cerveja bem gelada. E a salada do dia. Sei, sei o que disse sobre a salada. É que estou mesmo precisando maneirar. Só não gostaria que o rapaz achasse a mesma coisa. Vou ao banheiro. No caminho desinteressado, vejo um vulto do passado. Será possível? Sinto a pele formigar. Todos os meus pêlos arrepiam, avisando. É ele, meu Deus. Antônio. Está sentado naquela mesa do canto. Minhas pernas se aquietam. As pupilas dilatam e mudam de cor. Ficam claras. Paro atrás do pilar para vê-lo melhor. Ele não me viu. Observo. Ele está velho. Mas não perde o charme. Está fumando. Eu já parei. Parece estar sozinho. Mas está feliz. Dá pra ver. Deixa pra lá. Vou ao banheiro. Entro e vou direto ao espelho. Olho bem pra mim. Pele, rosto, olhos, boca. Lavo o rosto, retoco o batom, prendo os cabelos em um rabo. Sorrio. Ainda estou bonita sim. Será que ele ainda seria capaz de me desejar? Mesmo depois de tanto tempo morta? Éramos tão apaixonados, envolvidos, eloqüentes. Tão despreocupados. Irresponsáveis e felizes. Foi a última pessoa que amei. Depois dele, nunca. Nem me lembro quando foi a última vez que senti aquele frio na barriga. Ah, lembro sim, foi quando o Antônio foi embora... Nossa, que cor linda essa do seu batom. Aquela voz me traz de volta ao banheiro. Olho para o lado e a vejo. Linda, deve ter uns 20 anos. Ou menos. Usa uma roupa um pouco ousada. Mas qualquer atrevimento teria perdão. É cor de pêssego, respondo. Posso passar? Claro. Ela lambuza a boca com o meu batom, sem nenhum constrangimento. No maior sentido da liberdade. Obrigada, é que deixei a bolsa na mesa. Tchau. Tchau. Já não sou tão bonita agora. Será que devo mesmo passar na mesa do Antônio? E se... Espere um pouco, e se o quê? Não, não. Vamos parar com isso agora. Vou sair desse banheiro direto para a minha casa. Que Antônio o quê? Idéia maluca essa. Saí dali decidida. Passei rápido por aquela porta e, sem olhar para os lados, segui para a mesa onde havia deixado as minhas sacolas pesadas. A cerveja já estava lá. Gelada. Dei um grande gole. Congelou as minhas artérias. Ainda mais. Deixei dinheiro sobre a mesa. Agarrei as sacolas com força, a bolsa e saí daquele lugar perigoso. Mas deu tempo, meu Deus, deu tempo de ver, pelas janelas do restaurante, Antônio sentado com a moça perfeita do banheiro. Eles riam. Tropecei. As sacolas rasgaram. As minhas milhares de coisas espalharam-se com facilidade. O salto quebrou. E meus joelhos sangravam. Me esforcei para não chorar. Mas não contive o grito. De raiva e dor. Uma mescla entrega. Um rapaz parou pra me ajudar. Você está bem? Nããããooooo. Claro que não. Queria uma cova bem funda agora. Uma porta pra outra dimensão. Mas lógico, respondi apenas sim, obrigada! Ele segurou o meu braço. Levantei. Não ousei olhar para o lado. Será que Antônio viu? Só falta isso. O rapaz começou a recolher as minhas coisas. Eu, inerte. Atordoada ainda. Receosa. Na expectativa. Impossível fugir dela... Ouço então aquela voz. Helena, é você, Helena? Fecho os olhos. Será que assim ele desaparece? Fecho os olhos e ele não está mais ali. Não... Quando abro vejo os olhos de Antônio. Negros. Escuros e profundos como sempre. A minha maldição, aqueles olhos. Mas me viro rápido. E nada respondo. Apenas pego a bolsa, tiro os sapados e começo a caminhar. O sol quente já se fora. Deixara apenas a lembrança de um mormaço, que inflama meu corpo. Sinto-me nua. E só, como jamais permitira. Atravesso a rua, corro para meu carro. Entro rápido. Parto mais rápido ainda. Chego em minha casa exausta e salva. Sem minhas sacolas... Entrego-me ao chuveiro e a água fria me acolhe. Acalenta minha pele desprovida. Os joelhos ressentem-se. Havia me esquecido e quase não suporto. Vão cicatrizar. Sempre cicatrizam. Depois, um sono desconfiado me envolve. Não sonho, não deliro, não permito. Escolhi a solidão. A ela me entrego todas as noites. Sem medo. Sem sobressaltos, nem afogamentos. A ausência, muitas vezes, é a melhor presença.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Sem inspirar

Preciso trabalhar. Há dias tento me inspirar e mal consigo respirar. E tenho que escrever tanto... As palavras não se entendem. As idéias estão se acotovelando. São muitas. É preciso ordem. Não há ordem.
Acordo, disposta e ansiosa. Sento diante da tela em branco e ela continua em branco o resto do dia. Isso já dura uma semana. Tenho prazos, meu Deus, tenho prazos! O tempo me cerca, pinica meu corpo, deixa meus pensamentos sem ar. Quase morrem. A ansiedade me consome, avassaladora, cruel, afiada. Pára, pára! Paro. Não insisto, desisto. Deixa pra lá... Calma, preciso ficar calma.................
Vou tomar um café, beliscar baboseiras. Demoro um pouco. Queria demorar muito. Mas volto logo. Sento, me acomodo novamente. Fecho os olhos pra não ver o branco em branco. Decido piscar uma idéia na anarquia. Mas elas se acotovelam mais. Me machucam, me beliscam. Eu grito! Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...
Nada adianta. O que preciso está bem guardado, escondido. Ta até mofado.
Anteontem joguei tudo pro alto e fui pro cinema. Juno. Quase duas horas de um belíssimo filme. Quase duas horas de sossego. Paz. Queria viver naquela sala de emoções desocupadas. Cinema sozinha, uma boa história que não é minha. Pipoca gorda. Cheiro despreocupado. Mas os créditos vieram e voltei. Sentei, me acomodei novamente. E a tela, branca. Nada novo. Nada velho. Nada bom, nada ruim. Nada-nada-nada.
Ontem não suportei. Me joguei no sofá. Como num precipício, sabe? Como quem perde a partida final de um campeonato importante. Como quem sabe o ofício mas parece tomado por uma repentina amnésia que chega estúpida, sem propósito e sem medidas.
Hoje a tela tava branca novamente. Mas resolvi mudar isso e escrever. Sem porquês. É o que estou fazendo, meu caro. A tela não está mais branca. Agora quem está branca sou eu. Só eu.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Por carta

Não sei bem como começar esta carta, mas creio já ter começado, não é? Pois bem, então, como vai você? A família, os colegas de trabalho, os amigos, os inimigos? E os meus cachorros que ficaram aí contigo? Como vão as minhas coisas?
Aqui estou vivendo de repente. Tudo acontece. Nada é programado.
Acordo cedo, mas só porque o corpo pede. Ele é quem manda. Faço exercícios ao ar livre. Me alimento de pensamentos inatos. Durmo com sonhos alheios e desperto com pesadelos próprios. Sim, os malditos vieram comigo. Pensa que é fácil escapar?
Ma um dia eles morrem. Tenho fé.
Mesmo assim, consegui abrir um vazio enorme para preencher de descobertas, novidades, conhecimentos, curiosidades, simplicidades, facilidades. Vida nova. Nova vida. Com cheiro de dia começando, fresquinho. Ar purificado. E muita água corrente, que traz e leva. Não pára, sabe? Cansei de água parada.
Também tem lugar para novas pessoas. Sem preconceitos, predeterminações, predestinações. Sem pré nenhum. Ah, e sem pressa. Agora o tempo é meu amigo. Não nos cobramos, não nos atormentamos. Há respeito entre nós. Só assim podemos conviver e quem sabe, um dia, até sermos felizes juntos. Tudo é possível agora.
Tem espaço para cores berrantes e calminhas. E para as mescladas. Os sabores que picam. E os que derretem. Tem lugar de sobra para aromas, cheiros, odores oriundos. Tem um canto quente e uma aresta gelada.
Reservo ainda uma esquina sem desencontros. E caminhos abertos que me levarão às ruas, estradas, rios, mares, cidades e países que esperam ansiosamente por mim. E onde deixarei percepções, sensações, arrepios, delicadeza, volúpia. Sentimento.
Tem um lugarzinho bem apertado para o medo. Porque assim ele me protege sem me machucar. Para a tristeza também não dou moleza. Ela já quase não vem mais.
O amor já se instalou. Na verdade, foi ele que me aconselhou a buscar a felicidade. Eu a vejo sempre. Visitamos-nos com freqüência e estamos convivendo muito bem. Ela traz consigo a simplicidade, que me tranqüiliza. E a facilidade. Nada é tão fácil, ela diz, sempre que me abraça.
Como você pode ver, tudo está bem por aqui.
Aprendo vivendo. Vivo aprendendo.
Vem pra cá comigo!
Um beijo.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Ser

O universo é infinito porque somos pequenos demais.
Tão pequenos que sequer sabemos ser.
Apenas acreditamos saber.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A caixa

O que eu guardo nessa caixa?
É segredo. Coisa minha.
Pára. Não insista.
Aqui guardo o que não se mostra. O que ninguém jamais viu.
As lembranças abandonadas e as vontades esquecidas.
Os sonhos que nunca viveram.
As verdades nunca ditas.
E as mentiras juradas.
Guardo aqui as ilusões.
Os rancores e os amores.
Os sentimentos dissimulados
E as paixões dizimadas.
É aqui que escondo as lutas que não lutei.
Os caminhos perdidos e as trilhas jamais trilhadas.
Os mapas rasgados.
E as aventuras divagadas.
Aqui oculto o que me devora
A fome desnutrida e a sede não saciada.
O desejo proibido
E as aspirações censuradas
Abrigo aqui os gritos abafados
O verbo desconjugado.
Os detalhes não notados.
E a palavras encurraladas.
O que eu guardo nessa caixa?
Guardo o medo e a máscara.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Café amanhecido

Ele estava atrasado. E eu, ligeiramente ansiosa. Já estava no segundo café e no terceiro cigarro. Já folheara três revistas e tentara ler, em vão, a capa do jornal de ontem. Por que será que o jornal do dia sempre chegava no outro dia naquela cafeteria? Tudo era tão charmoso ali, tão gostoso e confortável. Mas as coisas sempre tendiam a atrasar naquele lugar. Olhei em volta à procura da garçonete. Ia pedir uma água, minha garganta estava secando. Cadê a moça? Ah está ali, atendendo aquela mesa. Espere um minuto! Acho que ele está sentado ali! Mas que desencontro, será que entrou e não me viu aqui? Levantei, abruptamente, deixei cair a bolsa grande que estava pendurada na cadeira, e as coisas se espalharam. Como sou desastrada. A garçonete correu para socorrer-me. Obrigada. Mas ele nem se virou. Que mal educado. Tudo bem, não deve ter me visto. Mas também, o que isso importa agora? Quero mesmo é reencontrá-lo. Espero sua volta desde um tempo que já não existe mais. Vou guardar as coisas bem rápido, depois organizo com calma. Agora preciso ir até ele. Preciso sentir o seu cheiro e ouvir a sua risada. Rir de suas piadas. Divagar com ele. Falar sobre o último filme que vimos juntos, há muito tempo, e que não tivemos tempo de comentar. Bem, vou andando, agora devagar e segurando a bolsa. Ele continua bonito, mesmo de costas, sei que continua bonito. Agora tem um cabelo levemente grisalho, mas continua todo desgrenhado, como na infância. E suas costas continuam largas. Vou me aproximando e sinto meus pés mais pesados. Frio na barriga, arrepio nas costas e boca formigando. Olá. Ele levanta a cabeça. Me olha profundamente. Nossa, como está diferente, mais velho. Os olhos parecem cansados e a pele angustiada. Mas o olhar é o mesmo. Sim, ele ainda mora naquele corpo. Olá, insisto. Ele não sorri, como eu esperava. Não se levanta, como eu esperava. Não me beija, nem me abraça. Apenas devolve o olá. Recíproco. Eu me sento na cadeira à sua frente, desolada. Começo a me anestesiar. Nossa, quanto tempo, hein. Digo, meio sonâmbula. Ele arrisca um sorriso, mas não tem sucesso. Começo a me entristecer. Ele, então, segura a minha mão, na tentativa de consolar alguém que pretende proteger, mas sabe que não pode. Sinto seu calor, sua pele ainda macia e acolhedora. Quase me alegro. Por um segundo meu corpo se alivia. Ele pergunta se estou bem. Sua voz ainda me fascina. Diz que o tempo não passou pra mim. Que sentiu sim a minha falta, durante todos aqueles longos anos. E em nenhum momento, ele sorri. Não vejo entusiasmo. Nada. Mas é ele, ainda, eu sei que é. Posso sentir a mesma voz de antes. Mesmo que agora esteja se esvaindo. O que está acontecendo, por que aquele adeus sem ter sido? Olho nos seus olhos, à procura daquela vida contagiante de antes. Só encontro dois pares de pupilas. Prisioneiras daquele olhar de meia vida juntos, meia vida separados. Procuro as palavras de ontem em sua boca. Mas ele não as diz. Elas já morreram. Foram sepultadas há tempos, agora eu sei. Ele mergulha um fio de olhar de antes nos meus olhos e então, solta a minha mão, de uma vez, pra não doer muito. Levanta-se desajeitado. Vira-se rapidamente e nada mais. Bonito, sempre bonito. Eu, por mais que tentasse, fiquei ali, parada, sentada, pregada naquela maldita cadeira daquela cafeteria esquecida, de noticias atrasadas. Vi aquele homem se arrastar calmamente até a porta, sem olhar pra trás, sem me dar qualquer porquê. Abriu a porta. Passou pela porta. Fechou a porta. E eu continuei ali, na cadeira solitária daquela mesa velha, não mais charmosa, com um café frio na minha frente e a garganta seca por um grito que não gritei. Os braços paralisados à espera do abraço que não veio, agora se prenderam à cadeira. A boca, semi-aberta, semi-acabada. Semi-boca. Os olhos desacreditados tentavam não ver o nada que surgia com o fechar daquela porta. A dor pairou. Bebi o café frio e o olhar endureceu. Mais uma vez. E agora sem fim. As lágrimas, então, viraram suor.

Ladainha

Tive medo de acordar e abrir a janela.
A janela, muitas vezes, é cruel.
Tive medo de abrir os olhos. De me mexer. Sentir que estava viva.
Não sabia se havia sol.
Muitas vezes não sabia.
Às vezes nada sei.
Penso que sei, mas não sei.
E nada me consome.
Nada é muito.
Verdade. O que é verdade?
O que é A verdade das coisas?
As coisas são reais?
O que é Ser real?
O que é ser?
Viver é o quê?
Será mesmo que quero saber?
O que é saber?
É ser?
Se não sei, não sou?
Agora a cama não mais me quer.
Preciso abrir os olhos e olhar.
Olhar é ver?
Meus olhos estão cegos.
Olho, mas não vejo.
Há dias em que não abro os olhos. Mas vejo.
Outros dias abro os olhos e nada vejo.
Em que dia sou mais feliz?
O que é Ser feliz?
Pronto. Abri os olhos. Está tudo vermelho.
Fugi da cama. Ali não era mais meu lugar.
E agora?
Era muito cedo e eu já de olhos para o mundo.
Que mundo?
Onde vivo?
Vivo?
Ah! Eu não quero. Não hoje.
Amanhã eu quero.
Vou viver até amanhã.
Posso morrer?
O que é morrer?
Será que já morri?
Alguém me chama.
Quem será?
Quem é quem? O que querem?
Eu quero o quê?
Por que será que todos sempre estão querendo?
Eu queria não querer.
E assim mesmo estou querendo.

Escrito em 2004

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Pode entrar

O que está olhando? Pára com isso e vai cuidar de sua vida, que deve estar muito chata para você ficar bisbilhotando a minha. Ah é, vai continuar aí, parado, olhando? E rindo, ainda por cima... Pois bem, continue. Nem ligo. Melhor: vou deixar você entrar.
Acomode-se, fique à vontade. Vou te servir meus amores e desamores, com seus sabores apimentados e surpreendentes. Depois você vai se abarrotar com a minha coragem e se extasiar com minhas alegrias. Vou deixar que desvende meus desejos mais excitantes e os segredos mais abusados. Vem, pode escancarar meus pudores e comover-se com algumas lembranças. Claro, abuse do meu bom humor e ria minhas risadas. Vai sentir-se tão bem com doces aromas guardados e delicados sabores apurados, que irá guardá-los de recordação. Vai ter vontade de se aninhar nos meus carinhos e dormir com os meus sonhos. Também cobiçará minhas conquistas e vibrará minhas vitórias.
Mas tome cuidado nessa hora.
Você também vai se deparar com derrotas feias e envelhecidas, que teimam culpar os sucessos alcançados. Será perseguido por alguns pesadelos que ainda não matei. Sofrerá com a tristeza de minhas angústias e será traído por medos mascarados. Sentirá náuseas ao descobrir arrependimentos ocultos e terá vergonha de algumas atitudes que encontrará escondidas em algum canto sujo.
E, se ao fim de tudo isso, ainda estiver aqui (mas duvido, me desculpe!) experimentará uma deliciosa sensação macia e reconfortante, com cheiro de infância e gosto de felicidade.
Eu prometo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Curto

Ele sempre a olhava com um sorriso. E no auge de seus 16 anos, ela gostava.
O sorriso dele era engraçado. Ela não sabia se ele sorria ou ria. Dela. Mas arriscava corresponder. Mesmo com receio, ela sorria pra ele.
Os olhos dele também pareciam engraçados. Às vezes, meio debochados. Seria essa a sua natureza? Era um tímido debochado.
O olhar receoso dela cruzava com os olhos juntos dele.
Sempre riam. Mesmo de longe, riam.
Um dia conversaram. Ele era alto e desajeitado. Bonito e grande demais para sua timidez. Era sim um tímido engraçado. Não falava muito. A voz era grossa. Bonita. E a conversa, curta.
Um dia se beijaram. Na boca! Beijo pequeno. Curto.
O tempo. Os anos...
Um dia se encontraram. Transaram. Curto.
Grande, pequeno. Debochado.
Foi.

Escrito em 2004.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Mundos

Ela tinha 13 anos e era gorda. Achava que por ser grande, era pequena. E apesar de seu tamanho, sentia-se invisível.
Em um mundo de magros, ser gorda era uma condenação.
Naquela tarde de um verão impossível, ela estava sozinha, suando, sentada na cadeira de balanço da varanda de sua casa, observando as meninas magras que brincavam na rua. De minuto a minuto a cadeira rangia, e a cada rangido, ela lembrava de sua condição. As bonitas são magras. As magras são bonitas. Ela não era. Era. Foi. Será.
Foi em um dos segundos suados daquela tarde eterna que ela sentiu um olhar morno, da rua, em sua direção. Com 13 anos, querendo ser o que não era, encontrou dois olhos sorrindo, de verdade. Sentiu um frio quente. Na rua, uma menina magra, longa e esguia a percebia. Naquele longo minuto ela era. E a comprida menina, de sorriso nos olhos, acenou. Ela, agora ela, não convidou.
Mas cadeira de balanço gritou mais alto. E então a magra entrou no jardim da casa.
Ficaram juntas, naquela varanda. Nada disseram por um intrínseco momento. Uma com o sorriso e a outra, com os olhos arregalados.
Ela existia. Era verdade. Descobriu-se no mundo que não era dela.
- Posso me sentar aqui? - Perguntou a menina longa.
Ela não sabia. Sequer conseguia.
- Posso? - Insistiu a comprida.
Com esforço, respondeu um soluçado sim.
Acomodou-se então, ali, com uma facilidade invejada.
- Sempre quis saber seu nome.
- Sou Lucinda... - disse sonâmbula.
- E eu Rita.
- E o que quer?...
- Conhecer você.
- Por quê?...
- Quero ser sua amiga, mas tive que criar coragem pra chegar até aqui. Não sabia se você ia gostar de mim.
As palavras lhe soaram estranhas e teve certeza de que falavam diferentes idiomas.
- Quer ir ao parque amanhã? - Continuou a longa menina magra, sentada aos pés da cadeira, que não parava de gritar.
- Não... - Disse dolorido. E com lenta rapidez, levantou-se daquela cadeira. Entrou na casa. Salva, trancou-se na cozinha, mas a fome nao estava lá. Fugiu para seu pequeno quarto, mas não conseguiu encontrar as suas coisas. Tinham desaparecido.

Escrito em 2001

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008


"Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.”


Clarice Lispector

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Gosto

Gosto de manhãs de domingo, frescas e com cheiro de grama molhada.
Gosto de dias ensolarados. E dos chuvosos.
Gosto de férias, de não ter o que fazer e fazer nada.
Gosto de cheiro de café com bolo de fubá.
Gosto de beijo na boca, de hálito de hortelã e cheiro de banho.
Gosto de cheiro de espuma de barbear e da pele lisinha do rosto do meu homem.
Gosto de sexo selvagem.
Gosto de ser admirada.
Gosto de chocolate com amêndoas, chocolate quente com conhaque em noites frias e muito sorvete de chocolate crocante em dias de verão.
Gosto de comer até passar mal.
Gosto de novela, de séries, enlatados.
Gosto de histórias de amor.
Gosto de cinema vazio e muita pipoca.
Gosto de ler. De pensar.
Gosto de acordar tarde e não ter hora pra dormir.
Gosto de recordar momentos especiais.
Gosto de sonhar acordada.
Gosto de sentir saudade.
Gosto de solidão.
Gosto de perceber um milagre.
Gosto de escrever me sentindo o deus das palavras.
Gosto de criar, de inventar.
Gosto de quando sinto a energia da vida.
Gosto de quando tenho coragem.
Gosto de surpresas agradáveis.
Gosto de espirrar.
Gosto de dar gargalhada.
Gosto de meus amigos sinceros e engraçados, cheios de amor, cheios de vida.
Gosto quando a vida por si me deixa feliz, sem precisar recorrer a estratagemas.
Gosto de quando sento em frente ao micro – assim como agora – e começo a escrever sem compromisso, apenas exercitando a liberdade que tenho aqui, a deliciosa sensação de que não há regras e que posso fazer o que quiser.
Gosto da liberdade, mas muitas vezes ainda me sinto presa a preconceitos, princípios, moral, medo, falta de um monte de coisas.
Nesses minutos insuportáveis sou o carrasco de mim.
Sou as muralhas e cada pedra fui eu que empilhei e selei.
Sou a cola, a porta, a fechadura.
Só não sei se sou a chave.

Texto escrito em 2003

domingo, 27 de janeiro de 2008

Uma família

Uma família. Várias vidas. Dona Lúcia era a mãe. Seu Armando, o pai. Julia, a primogênita. Miguel era o caçula.
Dona Lúcia, com seu 56 anos, era gorda. Professora, ensinava para viver. Calada, sobrevivia.
Seu Armando vivia para o Corinthians. Desde criança, este era o seu motivo. Tinha 60 anos.
Júlia queria ser atriz. Menina bonita, tinha 16 anos. Muitos amigos, vivia sorrindo. Mas, dentro de seu pequeno quarto, vivia chorando.
Miguel era feliz. Tinha 12 anos e ainda não sabia.
Dona Lúcia ficava feliz com a novela das oito. Acordava pensando nas personagens e rezava para o tempo voar.
Seu Armando trabalhava como um robô. Fazia tão bem seu trabalho que nem sabia por quê. Mas fazia. Sempre foi assim. E só era feliz no gol do Timão.
Júlia nem se lembrava quem era. Gostava tanto das aulas de teatro do colégio. E devorava Clarice Lispector.
Miguel gostava de beijar a mãe. Assistir o jogo do Corinthians com o pai. Debochava da irmã.
Um dia, dona Lúcia perdeu a novela. Seu Miguel ficou triste com o Corinthians. Júlia se apresentou na peça de fim de ano da escola. Brilhou no papel de Alaíde, a neurótica e oportunista noiva de “Vestido de Noiva”, do extasiante Nelson Rodrigues.
Brilhou tanto que agora queria ser Alaíde.
Miguel não entendeu.
Dona Lúcia se fez de entendida.
Seu Armando praguejou.
Mas Júlia já não mais era. Júlia, enfim, foi.
E a família, que nunca existiu mesmo...

Escrito em 20/junho/2004

Paralelo

Sempre foi de pensar muito, mas nunca havia pensado tanto e chegado a conclusões tão fantásticas.
Rogério tinha 13 anos, mas seu cérebro era mais velho. Seu pai dizia que era de outro mundo, o que ele encarava como outra galáxia. Sua mãe não o compreendia e quando ele fazia aquelas perguntas complexas, ela arregalava os olhos e gaguejava, depois piscava, e respondia com outra pergunta. "De onde você tirou isso, menino?"
E ele ficava ainda mais confuso, mas acostumado.
Na escola, todos o estudavam. Seus professores riam, muitas vezes, de suas conclusões e interrogações mais que precoces... Absurdas!
Ficção científica era seu forte, mas não acreditava em ficção. Apenas no científico. Para ele, havia seres extraterrestres entre nós e poderíamos, inclusive, ser seus descendentes. Sabia que o universo era infinito... Mas questionava o infinito e sua grandeza. Dizia que tamanho não existia e sim proporções. Que podíamos todos fazer parte de um átomo que formava outro mundo e este, por sua vez, se fazia em outro, e assim por diante. Acreditava que tempo e espaço eram os fundamentos de tudo e a vida era algo inexplicável e mágico. Sabia que existem várias esferas de vida, outras dimensões, mundos paralelos e diversos desfechos para qualquer história.
Quando cresceu, parou de perguntar. Passou a observar, refletir, meditar. Ficou velho e morreu pensando. Hoje está em outra esfera, pensando que poderia ser um átomo, uma formiga, um ET.
Amanhã ele parou de pensar e resolveu estudar literatura. Depois de amanhã é jogador de futebol. Outro dia foi responsável pelo fim deste mundo.
Ou daquele?
Rogério pirou.

Escrito em 2001.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Mas começo como?

Ter um blog hoje, eu sei, é banal. Afinal, há de todos os tipos, cores e sabores: já andei bisbilhotando... Mas pra mim é novidade. Há tempos quero arriscar e sempre invento uma desculpa e deixo pra depois.
Pois o depois chegou, enfim. Hoje, tomando um café no shopping, fui encorajada por uma amiga querida (uma escritora de raro talento, que ainda será muito famosa, eu sei!) que me incentivou, botou uma pilhazinha e cá estou eu escrevendo isso aqui, ai ai... Nem sei no que vai dar, mas vamos lá... Acabei de criar o "Sem Crase", bem no espírito de sem crise. E, assim, pretendo usá-lo para publicar meus textos, idéias, imagens, traços, riscos e muitos rabiscos, sem medo.

Frio na barriga e vamos lá.
Abaixo estou publicando um texto que tenho engavetado há alguns anos. Vou começar com ele... Pois, de certa forma, acho que merece estar aqui:


Buterfly
Sonhei com borboletas.
Quero ser levada por elas quando morrer.
Elas têm que estar lá!
Borboletas são os anjos do paraíso.
A vida pós-morte.
Vida eterna.

Beleza bonita e quieta.
Alegres, vivas. Leves.
Livres.
Sorrisos coloridos no ar.

Quando morrer, quero ser levada por elas.
Flutuar sorrindo. Gargalhar colorindo.
Viver eterna. Sorrir pra sempre.
Êxtase de vida na morte
Ruptura. Abre-fecha.
Vida.
Borboleta.