sexta-feira, 25 de julho de 2008

Sem volta

Olha, foi assim. Juro. Cheguei lá depois da hora marcada e encontrei o cara sentado no seu lugar. Sabia que estava atrasada, mas nunca imaginei que você iria embora. Desculpe. Mas fiquei puta da vida. Custava esperar um pouco? O trânsito estava um inferno, demorei pra encontrar um lugar pra estacionar a merda do carro. Me molhei com a chuva fina. Cheguei aqui irritada e não te encontrei. Pô. Só atrasei vinte minutos. Pensa que não sofri quando percebi que não ia conseguir chegar na hora marcada? Detesto atrasar, você sabe. Odeio descumprir acordos. Sou certinha com essas coisas. Tão certinha que até irrita, você sempre diz. E mesmo assim não me esperou. Sacana, você. A gente já não anda bem. Amor já virou relacionamento. E agora estamos beirando uma relação. Ô palavrinha seca essa: relação. Relação sexual, então, eu abomino. Parece experiência de laboratório. Mas antes isso do que nada, né? Porque ultimamente, nem isso, meu querido, nem isso. Sabe, tô começando a gostar de você não ter me esperado. Ia ser mais uma conversa chata sobre a nossa, argh, relação. Por que a gente tá prolongando essa coisa? Bem, eu já estava dando meia volta pra ir até a sua casa te dizer, calmamente, que estava tudo terminado, que melhor acabar agora, com alguma dignidade. Poderíamos ser amigos, sim, por que não? Foi aí, bem aí nesse momentinho de lucidez e determinação, que o cara se levantou. Que cara? O que eu disse que estava sentado no seu lugar. Bem no seu lugar. Ele se levantou e me encarou. Olhou pra mim como você, um dia, também olhou. Bem antes de virar relação. Eu não entendi nada. Mas não consegui desviar o olhar. Fiquei olhando pros olhos do cara, que olhava pros meus. Sabe assim, sem fim? Eu não sei dizer como aconteceu. Nem quando, nem por quanto tempo. Não me sinto culpada, porque juro, não era eu. Não sou disso. Sempre fui tímida. Nunca tive muitos namorados. Nunca sequer beijei em público assim, à luz do dia, no meio de um restaurante. Mas o cara me puxou. Envolveu-me em braços decididos. Um cheiro de barba anestesiou tudo, de repente. Me fez carne. E eu me rendi, assim, sem medo. Me doei, assim, fácil, fácil. A boca dele (boca mesmo, nada de lábios: boca) rasgou-se na minha. E a minha, ah, abandonou-se na dele. Ludibriada. Boca de boca na boca. Aí. Aí você chegou. Mais atrasado que eu, agora eu sei. E não está acreditando em nada disso que estou te contando. Não te culpo. Eu também não acreditaria. Mas olha, foi assim sim, eu juro. Não posso fazer mais nada. Já aconteceu. Minha pele já tá comprometida. Minha carne já tá marcada. Assim, sem volta.