sexta-feira, 14 de março de 2008

Pra colorir

Olhei pela última vez para aqueles olhos brancos. Beijei seus cachos descoloridos e disse adeus para as flores opacas deixadas sobre a mesa, agora inúteis. Então saí, sem piscar. Fechei a porta. Fechei. Mesmo. Segurei a maçaneta descascada. Puxei. Ela abriu. Passei. Fechei. Soltei. Tudo com calma. Na lentidão que eu precisava. Senti, logo em seguida, agora mais rápido, o meu corpo caindo. Estava tão pesado assim? Sim, estava. E eu nem sabia até agora. Leve, então, olhei pra cima, e pintei o céu de azul. Azul mesmo. Contemplei o dia, que me acolheu. Seja bem-vinda. O vento também veio me receber saltitante. Deixei que ele me mostrasse o caminho. A alameda estava cololorindo, passo-a-passo. O céu entorpecia no azul macio. E as árvores floriam amarelas. Felizes com o meu destino. Tirei os sapatos de salto alto. Pés brancos no chão vermelho. Inteiros. Palma no palmo. Há quanto tempo meus pés não tocavam o chão? Um senhor estava passando e me olhou desapontado. Deve ter pensado o que uma mulher tão bem vestida estava fazendo na rua, sem sapatos. Tive vontade de rir. Que bom, eu queria rir. Há quanto tempo não ria de mim? Senti, enfim, o asfalto avermelhar os meus pés. Ficou tão quente que precisei correr. Corri sem saber onde. Sem entender como. Sem ver o quando. O vento laranja inspirando meu corpo e suspirando meus cabelos, agora livres, esvoaçados e despreocupados com os nós. Então eu parei. Quase sem fôlego. Meu peito ardia. Que calor. Calor de outono. Vermelho por dentro e azul aqui fora. Gela, esquenta, arde, dói. Prazer roxo. Entrei num parque. E vi uma copa amarela. Novamente as flores amarelas. Agora floriam pra mim, convidando para que me acomodasse sob os galhos de sua árvore verde. Sentei-me ali. Tirei o casaco cor pastel. Embaixo, outra blusa incolor. Jurei que aboliria as cores incolores. Tinha o direito ao berro das cores vivas. Estava fresco e azulado ali. Tive vontade de ser feliz pra sempre. Viver, simplesmente, porque aquela copa podia ser verde ou amarela. Porque está chovendo agora. Porque o sol ainda está laranja. Viu só? Há todas as possibilidades, bem aqui. Tem sol e tá chovendo. A chuva não se incomodou. Simplesmente se deixou chover, em tons brilhantes. O sol gostou e latejou vermelho. A chuva me molhou. O sol me secou. Isso sim é viver.

10 comentários:

Narradora disse...

Muito bonito...cheio de imagens, completamente "visual". To pensando em abolir os incolores também.
Parabéns.

Friendlyone disse...

Brilhante! Adoro chuva com sol...morei num lugar onde podia ver a chuva no meio do mar... me fez lembrar essa época boa. E as cores do texto mexem com a gente...sei lá, até de grama verde lembrei. 12345 fechou!!! Matou a pau!

:-)))

Camilla disse...

Adorei as cores do seu texto. Vestiria cada uma delas. Inclusive a incolor. Uma a uma, mesmo que os dias estivessem cinza. Adorei. Um texto alegre na medida certa, sem a pieguice que costuma cerca a alegria escrita.
Camilla Tebet
www.essepapo.nafoto.net

Jacinta Dantas disse...

Caramba mulher,
bonito demais ler esse texto. Cada palavra é um passeio de belas sensações.
E me faz lembrar as "palavras de minha sobrinha Clara". Nossa! da entrada do céu tá saindo chuva de raios de sol, referindo-se ao sol que aos olhos dela, iluminava a chuva que caía.
Beijos e bom domingo

Unknown disse...

Olá moça...
Surpresa muito agradável entrar no seu cantinho e me deparar com um texto que fala sobre sol, chuva e cores...
Confesso ser apaixonada por todas essas formas que encantam o dia, justamente por serem coisas tão simples e que iluminam nossos olhores distraídos...
Agradeço pela visita e comentário em Esqudros, seja bem vinda por lá e volte sempre...
Até a volta... até a próxima... até um dia...
Valeu!:)...

Letícia disse...

"Jurei que aboliria as cores incolores. Tinha o direito ao berro das cores vivas."

(Luci)

Cores sempre e ser feliz - mesmo triste - sempre também.

Leio seus textos e já nos tornamos amigas. Admiração é um passo direto para a amizade de verdade.

Muitos bjs e obrigada por ler minhas tagarelices. :)

Camilla Tebet disse...

Querida, abri um novo espaço, com uma nova proposta, um novo aproach. É aqui mesmo no seu bairro. Não deixei o esse papo, mas criei o esse papo também. Vai lá... http://essepapotambem.blogspot.com/
Beijos

Luis Eustáquio Soares disse...

e eis que a felicidade vai emergindo e despontando e fazendo-se crível a partir do incrível; usual do inusual, nesses acasos concorrentes em que de um imprevisto, ou a partir dele, tocamos em outra rede de alteridade, somos peixes e temos todo o mar, ou deveria dizer o amor, revelando o anagrama.
beijos,
gostei de seu blog,
luis

Pratas Diversas disse...

"Isso sim é viver". Assim me senti ao ler seu texto, viva, colorida, presente, privilegiada. Obrigada por sempre comentar meus textos, isso me estimula a escrever sempre mais... um bjo querida amiga.

João Neto disse...

Todas as cores e você sabe fazer um arco-íris de palavras. Ler um texto assim faz o dia ter mais sentido e alegria.