sábado, 29 de março de 2008

Sentença

Reinava ali o perfume reconfortante de chá de camomila. Um aroma molhado que abrandava a agonia do pecado fresco. Vez ou outra, aquele tão desejado bálsamo da infusão era agredido pelo fedor da culpa. Eram intermináveis segundos malcheirosos. Povoados por lágrimas pesadas. Tão raivosas quanto o mar em noite de lua cheia. Quando até a maresia ficava tensa e fervia. Alastrava minhas narinas com seu pesado cheiro condimentado. Doíam até os olhos os malditos olores das lágrimas salgadas. Eu estava sentada na velha poltrona de meu pequeno apartamento. Sozinha. Segurando a xícara de porcelana pintada a mão pela minha avó. A xícara cheia do chá. De Camomila. Esquentava as minhas mãos de fada. Fada má. Não queria saborear o chá. Apenas me acomodar em sua fragrância de colo. O colo da avó que pintou a xícara que agora continha o chá. O chá que fundia as nossas almas. A minha e a da minha avó. Fiquei ali, estrategicamente estática. Congelada em mim. Até esfriar o chá. Até o aroma se esgotar e o ar voltar ao seu estágio inodoro de vida estéril. Expirava aquele doce perfume quente com toda a energia de meus pulmões insaciáveis. Não em busca de ar, mas do bálsamo. A vida. Então esfriou. O cheiro esvaiu-se. Pude sentir a fetidez impregnada em mim. Intensa e indesejável. Fui para a cozinha. Despi-me, nauseada pelo cheiro fétido da culpa. Queimei as roupas no microondas, que deu um estouro e pegou fogo. O apartamento foi tomado pelo cheiro seco de fio fundido. E pano cremado. Por um instante senti o perfume delicado da alegria: me livrei do cheiro dolorido das roupas denunciadas. Gostei de experimentar um odor melhor que o meu. Nua, fiquei estirada no chão frio da cozinha com as narinas atentas àquele cheiro pontudo e fugidio. E mais uma vez, adormeci sem culpa.

7 comentários:

Camilla Tebet disse...

Uau, que forte. E o que a gente não faz pra adormecer sem culpa hã? Queima tudo. Muito forte esse texto Lu, o mais forte seu que já li, cheio de sensações claras, de idéias obsucuras mas tão bem descritas e de uma ligação que fica clara com a Camomila, a xicara e o colo da avó. Adorei> O que mais gostei até agora. Pesado sem ser pesado. Denso! É isso, denso!
Que bom que voltou.
Beijos e vê se não demora mais assim

Camilla Tebet disse...

E qual é o perfume da alegria? É o não perfume do que já somos agora?
To lendo de novo! Adorei!

João Neto disse...

A Camilla falou e eu concordo. Denso. Forte e cheio de subtextos. E há odores dos quais nunca nos livramos mesmo. Só uma boa lembrança para retirá-los de nossa cabeça e nos dar uma noite de sono em paz.

Narradora disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Narradora disse...

Gostei do olfato conduzindo as sensações e dando ritmo ao texto. Primeiro o reconfortante cheiro de camomila, seguido do odor da culpa que quando "cremado", dá lugar ao perfume da alegria.
Vai na busca do abrigo conhecido, passa pela desesperança e acaba numa redenção, "em paz".
Muito bonito.
Bjs

Friendlyone disse...

Essa mania de ir juntando as culpas... Uma hora a gente cansa, estressa e tem que queimar tudo. Do contrario não dá pra continuar!

Pratas Diversas disse...

Fazia tempo que não visitava e mais ainda que não escrevo. Ler seu texto me fez querer voltar, suas palavras são sempre muito bem colocadas, o que faz a história se parecer com nossa vida.
Bjos com saudade