quinta-feira, 6 de março de 2008

Aquela viagem

Entrei de repente. E rápido, fechei a porta. Só assim seria possível seguir aquele caminho. Novo, tão inesperado. Desconhecido. Ante a expectativa morna de um enredo prescrito, optei por uma nova história, em que a única personagem conhecida seria eu. Não havia enredo, não havia produção. Nem mesmo direção. Havia eu. Tirei o vestido de uma vez. Mas com cuidado de mãe. Guardei-o na caixa, junto a todos aqueles apetrechos que o acompanham. Era lindo, como eu sonhara desde menina. Feito de seda, pérolas e sonhos. Mas os sonhos da menina. Não meus. Não mais. Fechei a caixa e, com cuidado, dei um laço bonito e bem feito. Acomodei-a sobre a cama junto a um bilhete curto e verdadeiro. Juntei algumas roupas na maleta vermelha. Apenas o que não poderia faltar mesmo. Queria muito uma nova biografia. Sem lembranças ultrapassadas. Prendi os cabelos em um rabo, coloquei meu jeans surrado, mas feliz. Aquele das melhores aventuras. Uma camiseta branca e meu velho e bom tênis, pra me levar para estradas distantes. Conferi os documentos, o dinheiro poupado. Peguei a bolsa, o casaco e, antes de sair, dei uma última olhada naquela linda caixa sobre a cama. Desci as escadas, o táxi já estava à minha espera. Entrei rápido no carro. Nenhum deles devia ter notado a minha ausência, pois ninguém veio atrás de mim. Para o aeroporto internacional, por favor. Era domingo e, portanto, o trânsito estava tranqüilo. A cidade parecia diferente, distante. Sentiria a falta de alguns lugares. E de algumas pessoas. Mas agora queria matar saudade apenas de mim, que não via há muito tempo. Meu corpo estava teso. Meu Deus, o que acontecerá na hora que derem por minha falta? Mas quando descobrirem, já terei alçado meu vôo. O vôo estava atrasado. Esperei na sala de embarque. Ansiosa. Precavida. Determinada. Folheei uma revista velha antes de ouvir o aviso. Chegou a hora. Agora. Não mais depois. Depois nunca mais! Agora, enfim. Não houve um só minuto, naquelas 12 exaustas horas dentro daquele avião, que eu tenha me permitido dormir. Sequer cochilar. Mesmo que quisesse. Havia uma multidão de sentimentos novos se acomodando. E sentimentos guardados estavam despertando, amarrotados. Maravilhados. E um pouco desconfiados. Senti-me invadida por um súbito prazer intenso. Decidido. E percebi então que a velha sensação de perturbação ambígua, não mais habitava ali. Não havia mais lugar pra ela. Minhas terras estavam prometidas apenas ao acaso. Sem mapas nem metas. Sem listas. Quando cheguei, anoitecia. A cidade brilhava e fui recebida por mim. Sem qualquer fantasia. E nenhum vestido rendado. Apenas eu, como nunca havia sido. Fui levada por mim para conhecer a cidade. Linda, encantadora. Surpreendente, graças a Deus. Quero ser surpreendida. Levar sustos. Ficar pasma, sabe? Fazer da vida a minha casa. O meu agora. Meu melhor presente. Depois, depois eu vejo. Por enquanto, seja apenas bem-vinda.

6 comentários:

Letícia disse...

Luci, Que texto bom de ler. Viajei junto com a sua personagem, vesti meu velho jeans e fui recebida por mim. Bom demais ler o que vc escreve. Me faz querer ler mais e sempre.

"Fazer da vida a minha casa. O meu agora. Meu melhor presente."

(Luci)


Bjs, Luci
E continuemos criando nossa Biblioteca Virtual.
Letícia

Friendlyone disse...

Sei exatamente o que é ter que viajar para se encontrar. A vida vai andando e se a gente não viaja, se perde de vista.


Ontem eu estava consertando meu post quando vc comentou. Tenho o péssimo hábito de ter que postar primeiro e depois ir revendo, acertando. Me sinto bem assim...é o que importa, não é mesmo?!

Há braços!
:-)))

Zélia disse...

"Fui levada por mim para conhecer a cidade. Linda, encantadora. Surpreendente, graças a Deus. Quero ser surpreendida. Levar sustos. Ficar pasma, sabe? Fazer da vida a minha casa. O meu agora. Meu melhor presente. Depois, depois eu vejo. Por enquanto, seja apenas bem-vinda."

Luci

As maiores e melhores coisas que alguém pode fazer por nós são feitas por nós mesmos.É nosso o poder de transformação e de dar cores novas ao que é visto.Adorei o "fazer da vida a minha casa" pois isso implica em vivermos verdadeiramente.E já que estamos aqui, por que deveria ser diferente?

Boa viagem para todos nós!

Jacinta Dantas disse...

Ei moça,
lendo-te, faço agora uma viagem de vida pelas diversas personas que sou Eu.
Foi bom!
Beijos
Jacinta

Beto Mathos disse...

Que viajem....
Viajei.

Narradora disse...

Seu blog foi uma surpresa boa...adorei o texto...
Voltarei mais vezes.