segunda-feira, 31 de março de 2008

Bilhete

Olha, minha menina, um dia eu volto. Fique tranqüila. Não ficará sozinha. Prometo. Tem suas bonecas de louça e suas balas coloridas. Fique calma, virei visitar os seus sonhos. Dia sim, dia não. Pra não ficar mal acostumada. Ouvirás minha voz. Acredite, cantarei pra você nas manhãs de domingo. Basta se concentrar. Sentirá até o meu perfume quando tiver saudade. Juro. Deixo-te um beijo. Guarda em uma caixinha. E não mostre a mais ninguém. É o nosso segredo. Somos cúmplices agora. E quando puder vir comigo, eu virei te buscar. Mas, hoje, minha pequena, hoje você não suportaria. Suas asas nem apontaram. Pare com isso. Enxugue as lágrimas e confie em mim. Se digo que volto, eu volto. E ponto final.
Já disse que te amo? Guarda isso também.

sábado, 29 de março de 2008

Sentença

Reinava ali o perfume reconfortante de chá de camomila. Um aroma molhado que abrandava a agonia do pecado fresco. Vez ou outra, aquele tão desejado bálsamo da infusão era agredido pelo fedor da culpa. Eram intermináveis segundos malcheirosos. Povoados por lágrimas pesadas. Tão raivosas quanto o mar em noite de lua cheia. Quando até a maresia ficava tensa e fervia. Alastrava minhas narinas com seu pesado cheiro condimentado. Doíam até os olhos os malditos olores das lágrimas salgadas. Eu estava sentada na velha poltrona de meu pequeno apartamento. Sozinha. Segurando a xícara de porcelana pintada a mão pela minha avó. A xícara cheia do chá. De Camomila. Esquentava as minhas mãos de fada. Fada má. Não queria saborear o chá. Apenas me acomodar em sua fragrância de colo. O colo da avó que pintou a xícara que agora continha o chá. O chá que fundia as nossas almas. A minha e a da minha avó. Fiquei ali, estrategicamente estática. Congelada em mim. Até esfriar o chá. Até o aroma se esgotar e o ar voltar ao seu estágio inodoro de vida estéril. Expirava aquele doce perfume quente com toda a energia de meus pulmões insaciáveis. Não em busca de ar, mas do bálsamo. A vida. Então esfriou. O cheiro esvaiu-se. Pude sentir a fetidez impregnada em mim. Intensa e indesejável. Fui para a cozinha. Despi-me, nauseada pelo cheiro fétido da culpa. Queimei as roupas no microondas, que deu um estouro e pegou fogo. O apartamento foi tomado pelo cheiro seco de fio fundido. E pano cremado. Por um instante senti o perfume delicado da alegria: me livrei do cheiro dolorido das roupas denunciadas. Gostei de experimentar um odor melhor que o meu. Nua, fiquei estirada no chão frio da cozinha com as narinas atentas àquele cheiro pontudo e fugidio. E mais uma vez, adormeci sem culpa.

segunda-feira, 24 de março de 2008

A quatro mãos


A quatro mãos: este foi o nome que escolhemos, eu e Friendlyone, para o blog que inauguramos esta semana! Isso mesmo, agora somos "sócias"!!!

Neste novo espaço vamos dividir a narrativa de um conto, entitulado "Casa de bonecas", que está sendo escrito sob dois olhares diferentes e quatro mãos ávidas.

O primeiro capítulo já foi postado...


http://luci-friendlyone.blogspot.com

Bjo, bjo


Luci :)))

segunda-feira, 17 de março de 2008

Por favor, um sonho!

Sentei-me na calçada. Era uma rua bonita, de sobrados coloridos, crianças correndo em risadas doces e picolés derretidos. Pipas alegravam ainda mais o céu de baunilha. Havia, na esquina, uma padaria charmosa e antiga, com os melhores confeitos já confeitados e enfeitados. Lembravam-me a Fantástica Fábrica de Chocolate, mas da primeira versão do filme, quando eu ainda era uma menina feita de algodão doce. Eu adorava me lambuzar com o sonho da padaria da esquina. Tinha grande, pequeno e médio. De chocolate, baunilha, morango e tradicional. Eu gostava do tradicional médio. E essa era a minha sina. Sentava lá, na sarjeta, com o meu sonho tradicional médio. Fechava os olhos para concentrar-me apenas no paladar. Ah, o paladar. O melhor dos sentidos, sem dúvida. Se pudesse, tampava até os ouvidos. Ficaria cega e surda naquele doce momento. Queria saborear. Só. Sentir com a boca. A língua. Guardar todas as inúmeras sensações delicadas e fumegantes. Porque açúcar engorda, mas me faz feliz. E eu gostava tanto do tradicional médio que não me permitia experimentar novas versões. Até tentava, de vez em quando, na expectativa de outras terras degustativas. Quem sabe até mais agradáveis. Mas não conseguia. Era mais forte que eu. Aquela profusão delicada de sabores já me fazia feliz. Impedia-me de tentar outros gostos. Era tão feliz com o tradicional médio. Tão açucarada. Até as crianças da rua riam de minha cara de céu quando estava me deliciando com meu doce preferido. A Aninha, por exemplo. Ela tinha apenas nove anos e já experimentara todos os sabores possíveis da padaria da esquina. E ainda sugerira à dona Doca que criasse algo novo. Corajosa desbravadora essa menina. Eu? Eu bem que tentava. Todo sábado à tarde, por volta das 17h, depois de tirar a minha religiosa soneca, calçava o meu tênis azul e ia até a padaria da dona Doca. E lá, nem precisava pedir, que ela já havia embrulhado o meu sonho tradicional médio. A Aninha, muitas vezes, aparecia por lá e ria de mim, novamente. Depois, pedia um doce diferente – certa vez quis profiteroles de banana. Espantei-me com tanta inovação. Como podia? Tão novinha e cheia de sabores. A menina também me acompanhava até a sarjeta em frente a minha casa e sentava-se comigo. Ela, com seus sabores difusores. Eu com a minha tradição encarnada. Sempre me oferecia um pedaço de seu doce, mas eu recusava, prontamente. Como poderia? Ia estragar o meu paladar. Ia ferir meus princípios degustativos de ser. Hoje, estou aqui sentada na mesma sarjeta. São 17h40 e estou estranha. Não sei o que sentir. Nem o que fazer. A dona Doca, da padaria, ficou doente e não fez os doces hoje. Como pode? A Aninha ficou com pena e me trouxe uma bomba de chocolate da padaria da rua de cima, que nunca entrei na vida. Estou olhando pra essa bomba há 20 minutos. Mas não tenho coragem. Se o gosto for ruim, tudo bem. Mas e se gostar?

sexta-feira, 14 de março de 2008

Pra colorir

Olhei pela última vez para aqueles olhos brancos. Beijei seus cachos descoloridos e disse adeus para as flores opacas deixadas sobre a mesa, agora inúteis. Então saí, sem piscar. Fechei a porta. Fechei. Mesmo. Segurei a maçaneta descascada. Puxei. Ela abriu. Passei. Fechei. Soltei. Tudo com calma. Na lentidão que eu precisava. Senti, logo em seguida, agora mais rápido, o meu corpo caindo. Estava tão pesado assim? Sim, estava. E eu nem sabia até agora. Leve, então, olhei pra cima, e pintei o céu de azul. Azul mesmo. Contemplei o dia, que me acolheu. Seja bem-vinda. O vento também veio me receber saltitante. Deixei que ele me mostrasse o caminho. A alameda estava cololorindo, passo-a-passo. O céu entorpecia no azul macio. E as árvores floriam amarelas. Felizes com o meu destino. Tirei os sapatos de salto alto. Pés brancos no chão vermelho. Inteiros. Palma no palmo. Há quanto tempo meus pés não tocavam o chão? Um senhor estava passando e me olhou desapontado. Deve ter pensado o que uma mulher tão bem vestida estava fazendo na rua, sem sapatos. Tive vontade de rir. Que bom, eu queria rir. Há quanto tempo não ria de mim? Senti, enfim, o asfalto avermelhar os meus pés. Ficou tão quente que precisei correr. Corri sem saber onde. Sem entender como. Sem ver o quando. O vento laranja inspirando meu corpo e suspirando meus cabelos, agora livres, esvoaçados e despreocupados com os nós. Então eu parei. Quase sem fôlego. Meu peito ardia. Que calor. Calor de outono. Vermelho por dentro e azul aqui fora. Gela, esquenta, arde, dói. Prazer roxo. Entrei num parque. E vi uma copa amarela. Novamente as flores amarelas. Agora floriam pra mim, convidando para que me acomodasse sob os galhos de sua árvore verde. Sentei-me ali. Tirei o casaco cor pastel. Embaixo, outra blusa incolor. Jurei que aboliria as cores incolores. Tinha o direito ao berro das cores vivas. Estava fresco e azulado ali. Tive vontade de ser feliz pra sempre. Viver, simplesmente, porque aquela copa podia ser verde ou amarela. Porque está chovendo agora. Porque o sol ainda está laranja. Viu só? Há todas as possibilidades, bem aqui. Tem sol e tá chovendo. A chuva não se incomodou. Simplesmente se deixou chover, em tons brilhantes. O sol gostou e latejou vermelho. A chuva me molhou. O sol me secou. Isso sim é viver.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Mensagem importante...


Pessoas... Expandi as minhas fronteiras... Criei outro blog... dá pra acreditar?...

Ontem, conversando com a minha querida amiga Friendlyone sobre os capítulos desta história que vinha publicando (últimos dois posts), ela me aconselhou a criar um espaço especialmente para este fim, já que eu poderia me sentir presa na sequência da narrativa... E assim, correria o risco de deixar de publicar outros textos enquanto não terminasse a história.
Então decidi criar o "Minhas reticências", onde publicarei os capítulos de minhas historietas... Quem estiver acompanhando os dois últimos posts, terá que migrar para o "Minhas reticências" para continuar a história.
Convido a todos para conhecer esse meu novo espaço.
Agora o Sem Crase, vai continuar como sempre, sem crise!!!
Bjos....




quarta-feira, 12 de março de 2008

A segunda parte de uma provável história

Os portugueses eram os Almeida. Seu Pedro era robusto, de feição forte e marcada. Tinha poucos cabelos e um grande bigode. E falava pouco, mas que você não se engane com isso: ele dava valor às palavras. Sabia exatamente a hora certa e o lugar perfeito para encaixá-las. Dona Maria Isabel era pequena e mirrada. Tinha rugas precoces e o corpo curvado: parecia carregar um grande fardo. Usava roupas escuras e um avental eterno. Havia, ainda, na casa, dois rapazes: Antenor e Joaquim. O primeiro, o mais velho, era alto e carrancudo como o pai, mas dono de uma beleza peculiar: apesar de um nariz desproporcional, seu rosto era iluminado. Estudava para ser doutor na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O mais novo, Joaquim, era forte e alegre. Tinha um sorriso verdadeiro, cabelos macios e olhos que encantavam. Vestia-se impecavelmente e trabalhava com o pai nos negócios da família. ...E fazia sucesso com as moçoilas da cidade.
Eles estavam esperando por Stella na estação: Dona Isabel e Joaquim. Ela foi uma das últimas a deixar o vagão. E foi recebida com um sorriso e dois apertos de mão. Poucas palavras no caminho até a casa. Melhor assim, pensou, desprotegida, aquela menina que não queria estar ali.


A primeira parte desta provável história está no post abaixo.
Se haverá a terceira parte? Tomara!

domingo, 9 de março de 2008

Apenas o começo de uma provável história

Contrariando a expectativa da menina, aquele dia amanhecera claro e de um azul infinito. Não combinava em nada com o que ela estava vivendo – mas estava vivendo. E, por isso, seus olhos recusavam-se a abrir. Ela não queria enfrentar. Estava cansada. Uma tristeza branca invadiu seu corpo, que ficou ainda mais reticente. Meu Deus, preciso levantar. Preciso. E foi com uma energia esvaída que Stella abriu os olhos. Com uma lentidão pesada, ergueu-se da cama estreita onde passara a primeira de muitas noites que ainda viriam. O quarto era apertado para as duas camas e a pequena mesa. Mas só ela dormia ali, naquela manhã. As paredes estavam úmidas e com a pintura envelhecida. Descascava com facilidade. Não havia quadros, apenas uma janela para o mundo, com uma fresta laranja de sol nascente avisando que a vida continuava. Isso além das camas, a mesa, o teto, o piso, Stella e um vazio que não cabia naquele cômodo mofado.
Stella Teresa Rizzo havia chegado à casa dos portugueses na noite anterior. Trazia consigo uma pequena valise desbotada com algumas poucas roupas velhas. Usava um vestido não menos desbotado, sapatos surrados e empoeirados pela viagem de sua casa, na fazenda Esperança, até ali. Seus cabelos castanhos estavam emaranhados e presos em um coque. E seus olhos verdes eram opacos e despretensiosos. Ela tinha 15 anos e não sabia, ainda, a bela mulher que podia ser. Seu corpo grande e ossudo a deixava um tanto desengonçada e escondia segredos que nem ela conhecia. Seu andar era arrastado. Estava chegando àquela casa para ajudar na limpeza e se casar. Seus pais precisavam sobreviver.

Esta é uma narrativa que escrevi de supetão, há algum tempo, com a pretensão de que pudesse dar prosseguimento, mas acabei engavetando... Hoje resolvi publicar pois assim, quem sabe, consigo dar continuidade a ela, melhorá-la... E se você, meu caro, quiser palpitar, criticar, dar idéias, sugerir, até mesmo dividir essa história... Tudo tudo será muito bem vindo!

quinta-feira, 6 de março de 2008

Aquela viagem

Entrei de repente. E rápido, fechei a porta. Só assim seria possível seguir aquele caminho. Novo, tão inesperado. Desconhecido. Ante a expectativa morna de um enredo prescrito, optei por uma nova história, em que a única personagem conhecida seria eu. Não havia enredo, não havia produção. Nem mesmo direção. Havia eu. Tirei o vestido de uma vez. Mas com cuidado de mãe. Guardei-o na caixa, junto a todos aqueles apetrechos que o acompanham. Era lindo, como eu sonhara desde menina. Feito de seda, pérolas e sonhos. Mas os sonhos da menina. Não meus. Não mais. Fechei a caixa e, com cuidado, dei um laço bonito e bem feito. Acomodei-a sobre a cama junto a um bilhete curto e verdadeiro. Juntei algumas roupas na maleta vermelha. Apenas o que não poderia faltar mesmo. Queria muito uma nova biografia. Sem lembranças ultrapassadas. Prendi os cabelos em um rabo, coloquei meu jeans surrado, mas feliz. Aquele das melhores aventuras. Uma camiseta branca e meu velho e bom tênis, pra me levar para estradas distantes. Conferi os documentos, o dinheiro poupado. Peguei a bolsa, o casaco e, antes de sair, dei uma última olhada naquela linda caixa sobre a cama. Desci as escadas, o táxi já estava à minha espera. Entrei rápido no carro. Nenhum deles devia ter notado a minha ausência, pois ninguém veio atrás de mim. Para o aeroporto internacional, por favor. Era domingo e, portanto, o trânsito estava tranqüilo. A cidade parecia diferente, distante. Sentiria a falta de alguns lugares. E de algumas pessoas. Mas agora queria matar saudade apenas de mim, que não via há muito tempo. Meu corpo estava teso. Meu Deus, o que acontecerá na hora que derem por minha falta? Mas quando descobrirem, já terei alçado meu vôo. O vôo estava atrasado. Esperei na sala de embarque. Ansiosa. Precavida. Determinada. Folheei uma revista velha antes de ouvir o aviso. Chegou a hora. Agora. Não mais depois. Depois nunca mais! Agora, enfim. Não houve um só minuto, naquelas 12 exaustas horas dentro daquele avião, que eu tenha me permitido dormir. Sequer cochilar. Mesmo que quisesse. Havia uma multidão de sentimentos novos se acomodando. E sentimentos guardados estavam despertando, amarrotados. Maravilhados. E um pouco desconfiados. Senti-me invadida por um súbito prazer intenso. Decidido. E percebi então que a velha sensação de perturbação ambígua, não mais habitava ali. Não havia mais lugar pra ela. Minhas terras estavam prometidas apenas ao acaso. Sem mapas nem metas. Sem listas. Quando cheguei, anoitecia. A cidade brilhava e fui recebida por mim. Sem qualquer fantasia. E nenhum vestido rendado. Apenas eu, como nunca havia sido. Fui levada por mim para conhecer a cidade. Linda, encantadora. Surpreendente, graças a Deus. Quero ser surpreendida. Levar sustos. Ficar pasma, sabe? Fazer da vida a minha casa. O meu agora. Meu melhor presente. Depois, depois eu vejo. Por enquanto, seja apenas bem-vinda.

domingo, 2 de março de 2008

Lancinante

Pior que não ser correspondido por um grande amor é perder a capacidade de amar.
O sol estava quente e eu caminhava sem perceber. Suava. A roupa branca não marcava. Carregava muitas sacolas pesadas. As mãos, acostumadas, seguravam forte. Os pés latejavam. Entrei no primeiro restaurante que vi. Estava cansada e faminta. Passara aquela manhã fazendo compras no centro da cidade, onde podia pechinchar e conseguir algumas bagatelas. Mas jurei que seria a última vez. Ah seria! Da próxima iria mesmo ao shopping center, a maravilha do mundo moderno, com suas facilidades e confortos. Sentei-me na pequena mesa perto do ar-condicionado. Acomodei minhas sacolas. Coloquei a bolsa do lado. Esfreguei a testa. Estava melada. Tudo grudava em mim. Precisava ir ao banheiro. Mas o garçom aproximou-se. A senhora quer fazer o pedido agora ou está esperando alguém? Senhora é a sua avó, me deu vontade de responder. Sei, sei que tem todo aquele lance de que é respeitoso, mas pra mim é justamente o contrário: uma p... falta de respeito. Quando me chamam de senhora, me sinto infinitamente mais velha do que já sou. Feia, sem charme, nada atraente. Juro, acaba com o meu dia. Preferia levar uma cantada grosseira... E o rapaz, coitado, ainda pergunta se espero alguém. Agora só falta me oferecer uma salada leve, ótima pra quem precisa de uma dieta. Aí sim, completa o ciclo do acabou-de-estragar-o-meu-dia. Mas respondo educadamente, sem sorrir hein, que não espero ninguém. Não espero mesmo. Não espero nada. Graças a Deus. Esperar é ter esperança. Estar em constante expectativa. E disso me livrei há muito tempo. Esperar é uma roupa velha que não mais me serve. Ingrediente fora das minhas receitas. Item excluído do meu cardápio. Alias cadê o cardápio. Na mão do garçom, que ainda me olha, na expectativa, coitado. Deve estar me achando doida. A velha doida... Sentada sozinha em um restaurante familiar de mesas grandes, carregando todas aquelas sacolas sem ajuda e ainda tendo surtos de mudez.... Bom, deixe-me ver. Quero uma cerveja bem gelada. E a salada do dia. Sei, sei o que disse sobre a salada. É que estou mesmo precisando maneirar. Só não gostaria que o rapaz achasse a mesma coisa. Vou ao banheiro. No caminho desinteressado, vejo um vulto do passado. Será possível? Sinto a pele formigar. Todos os meus pêlos arrepiam, avisando. É ele, meu Deus. Antônio. Está sentado naquela mesa do canto. Minhas pernas se aquietam. As pupilas dilatam e mudam de cor. Ficam claras. Paro atrás do pilar para vê-lo melhor. Ele não me viu. Observo. Ele está velho. Mas não perde o charme. Está fumando. Eu já parei. Parece estar sozinho. Mas está feliz. Dá pra ver. Deixa pra lá. Vou ao banheiro. Entro e vou direto ao espelho. Olho bem pra mim. Pele, rosto, olhos, boca. Lavo o rosto, retoco o batom, prendo os cabelos em um rabo. Sorrio. Ainda estou bonita sim. Será que ele ainda seria capaz de me desejar? Mesmo depois de tanto tempo morta? Éramos tão apaixonados, envolvidos, eloqüentes. Tão despreocupados. Irresponsáveis e felizes. Foi a última pessoa que amei. Depois dele, nunca. Nem me lembro quando foi a última vez que senti aquele frio na barriga. Ah, lembro sim, foi quando o Antônio foi embora... Nossa, que cor linda essa do seu batom. Aquela voz me traz de volta ao banheiro. Olho para o lado e a vejo. Linda, deve ter uns 20 anos. Ou menos. Usa uma roupa um pouco ousada. Mas qualquer atrevimento teria perdão. É cor de pêssego, respondo. Posso passar? Claro. Ela lambuza a boca com o meu batom, sem nenhum constrangimento. No maior sentido da liberdade. Obrigada, é que deixei a bolsa na mesa. Tchau. Tchau. Já não sou tão bonita agora. Será que devo mesmo passar na mesa do Antônio? E se... Espere um pouco, e se o quê? Não, não. Vamos parar com isso agora. Vou sair desse banheiro direto para a minha casa. Que Antônio o quê? Idéia maluca essa. Saí dali decidida. Passei rápido por aquela porta e, sem olhar para os lados, segui para a mesa onde havia deixado as minhas sacolas pesadas. A cerveja já estava lá. Gelada. Dei um grande gole. Congelou as minhas artérias. Ainda mais. Deixei dinheiro sobre a mesa. Agarrei as sacolas com força, a bolsa e saí daquele lugar perigoso. Mas deu tempo, meu Deus, deu tempo de ver, pelas janelas do restaurante, Antônio sentado com a moça perfeita do banheiro. Eles riam. Tropecei. As sacolas rasgaram. As minhas milhares de coisas espalharam-se com facilidade. O salto quebrou. E meus joelhos sangravam. Me esforcei para não chorar. Mas não contive o grito. De raiva e dor. Uma mescla entrega. Um rapaz parou pra me ajudar. Você está bem? Nããããooooo. Claro que não. Queria uma cova bem funda agora. Uma porta pra outra dimensão. Mas lógico, respondi apenas sim, obrigada! Ele segurou o meu braço. Levantei. Não ousei olhar para o lado. Será que Antônio viu? Só falta isso. O rapaz começou a recolher as minhas coisas. Eu, inerte. Atordoada ainda. Receosa. Na expectativa. Impossível fugir dela... Ouço então aquela voz. Helena, é você, Helena? Fecho os olhos. Será que assim ele desaparece? Fecho os olhos e ele não está mais ali. Não... Quando abro vejo os olhos de Antônio. Negros. Escuros e profundos como sempre. A minha maldição, aqueles olhos. Mas me viro rápido. E nada respondo. Apenas pego a bolsa, tiro os sapados e começo a caminhar. O sol quente já se fora. Deixara apenas a lembrança de um mormaço, que inflama meu corpo. Sinto-me nua. E só, como jamais permitira. Atravesso a rua, corro para meu carro. Entro rápido. Parto mais rápido ainda. Chego em minha casa exausta e salva. Sem minhas sacolas... Entrego-me ao chuveiro e a água fria me acolhe. Acalenta minha pele desprovida. Os joelhos ressentem-se. Havia me esquecido e quase não suporto. Vão cicatrizar. Sempre cicatrizam. Depois, um sono desconfiado me envolve. Não sonho, não deliro, não permito. Escolhi a solidão. A ela me entrego todas as noites. Sem medo. Sem sobressaltos, nem afogamentos. A ausência, muitas vezes, é a melhor presença.