quarta-feira, 30 de abril de 2008

Sem mais nada

Caiu. Estava distraída, observando borboletas. Não viu o buraco. Mas ele a viu. Engoliu-a de repente. Não houve tempo nem para o grito. Assustada, levantou-se rápido. Olhos arregalados e boca trêmula. Tentou escalar. Mas a terra não era firme. Suas unhas ficaram sujas. Sua roupa empoeirada. Não tentou uma segunda vez. Sua pele entorpeceu-se. Sentiu náuseas ao constatar que ia ser muito difícil sair dali. O pior é que estava cansada. Quando caiu, estava voltando do trabalho, depois de um longo dia de luta. Só queria chegar em casa e sentir o aconchego de sua cama quente, depois de um banho mais quente ainda. Sentir o cheiro adocicado da sua criança. O beijo reconfortante de seu homem. E fora engolida por aquele buraco fétido. Escuro. Sentou-se. Estava com fome. Tinha chiclete na bolsa. Sua bolsa a salvaria! Sim, o celular! Procurou-o no meio de todas as suas intermináveis tralhas. Ah, aqui está. Começou a discar, afoita, quando o maldito aparelho desligou sozinho. A bateria! Acabou a bateria. “Bem que me avisaram pra carregar. Mas eu sempre me esqueço”. Voltou, então, ao chiclete. Tinha de todos os sabores possíveis. Era uma mulher de sabores. Escolheu o de frutas vermelhas. Estava escurecendo e ela ali, naquele buraco, conformada, deliciando-se com um sabor doce-azedo artificial. Estava com medo. Mas não tinha energia para fazer mais nada. Não queria tentar escalar novamente. Não queria gritar. Não queria mais nada. Simplesmente resolveu chorar e dormir. Ali, na terra mesmo. Ao relento. Na noite fria que viria. Com medo sim. “Mas e daí?”. Acomodou-se melhor. Fez um montinho de terra de travesseiro. Tirou da bolsa um casaquinho leve que sempre carregava. Abriu um guarda-chuva sobre sua cabeça, a fim de proteger-se da friagem que começara. E dormiu, enfim. Sem mais nada.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Havia sim

Havia uma rua de árvores frondosas e casas bonitas. Havia uma casa amarela. Antiga, mas bem cuidada. De janelas grandes. Com floreiras. E flores. Coloridas. Havia um portão de ferro que gritava quando alguém o abria. Havia uma varanda ampla e iluminada. Com cadeiras de madeira, mas confortáveis. Com samambaias alegres. Confiáveis. Havia uma porta de duas faces. E estavam, ambas, abertas. Então havia uma sala bonita. Móveis de outros tempos. Tudo limpo. Muito lindo. Detalhes não faltavam ali. Relicários, porcelana, delicadas toalhinhas de crochê. Porta-retratos cheios de família. Com sorrisos e muita história. Vidas ali, na minha cara, dizendo “vem ser feliz com a gente”. Havia um sofá cor de baunilha com almofadas coloridas. Uma mesa redonda de madeira escura. Uma fruteira com frutas frescas bem escolhidas. Havia quadros de cavalos e casas de fazenda nas paredes beges. Havia um lustre de cristal. Os raios de sol chegavam pela janela e corriam para os pequenos cristais do lustre, espalhando brilhos coloridos pela sala. Fui atingida por um brilho azul quando um aroma aconchegante de bolo de fubá invadiu subitamente minhas narinas, avisando que era hora de ser feliz. Me puxou para a cozinha. Havia um fogão a lenha. Leite fresquinho. Fervendo. E doce de leito no tacho. Havia uma geladeira antiga, com barulho de infância. Havia uma mesa bonita, com toalha colorida de avó feliz. Café no bule e xícaras pintadas a mão. Biscoitos de polvilho trazidos pela tia. Havia mingau de aveia. Bolinhos de chuva com canela e açúcar. Quentinhos. E o bolo de fubá, claro. Havia um assovio. Assoviava uma melodia alegre e doce. Havia um vestido estampado. Cabelos de algodão. Havia também um sorriso. Um sorriso de mel. Olhos negros puxadinhos. Havia braços quentes. Abertos e entendidos. Para o melhor abraço. Havia um colo macio, florido de compreensão. Um beijo molhado no amor incondicional. Um arrepio, eu senti. Havia uma benção abençoada por Deus. Sabedoria concedida. Afago milagroso. Havia sim, muita saudade ali.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Arrebatamento

Foi por pouco. Escondi-me atrás do muro baixo da casa branca de janelas azuis. Parece que ela se foi. Será? Elas sempre voltam. E eu ainda sinto as agulhas do medo. Melhor ficar mais um pouco aqui. Cautela. Sempre a cautela. Bom, vou aproveitar e respirar o ar desse jardim de rosas vermelhas. Estou aqui encolhida. Vou esticar as pernas e descansar meu corpo por um momento. Corri muito até encontrar esse pequeno esconderijo. Ainda bem que é um jardim vermelho. Da última vez me escondi em um terreno sujo e abandonado. Tão abandonado que até os ratos haviam fugido. E eu tive que sobreviver apenas de alivio. Nada mais. Mas agora estava em um jardim com flores vermelhas, grama verde molhada, borboletas coloridas e pássaros mágicos. Tinha até pássaros, meu Deus! E eles voavam alto. Por um minuto, mirei meu olhar determinado no vôo de um passarinho azul, que voou tão alto que seu azul se fundiu ao azul infinito do céu. Foi a maior experiência de liberdade que já presenciei. Que presente! Fez-me recordar que sou alada. Então fiquei feliz, até tentar fazer as minhas asas se moverem. Depois de alguns longos minutos de esforço: nada. Elas atrofiaram com a falta de uso. O medo atrofiou minhas asas grandes e bonitas. Nunca as usei. Fiquei triste ao lembrar que tinha asas e não podia voar. Agora então, que havia bruxas no meu encalço, seriam tão úteis. Nenhuma bruxa seria páreo pra mim. Mas as asas nem abriam, quanto mais voar... Quem sabe um dia, com uma boa fisioterapia, elas voltem ao seu ofício: o de me levar para as nuvens. Para lugares jamais visitados e que eu sei, têm lugar de honra guardado pra mim. Tem gente boa me esperando. Um dia, quem sabe... Mas agora não me resta outra saída se não enxugar as lágrimas e esperar um pouco encolhida sob aquele muro baixo. Eu estou presa em um lugar lindo e aconchegante, onde poderia até ser feliz, mas não podia me mover, a não ser rastejando junto aos insetos. Isso mesmo, tornei-me um ser rastejante daquele paraíso. Foi nesse momento que ele apareceu. Era alto e bonito. E estava em pé, segurando algumas rosas vermelhas recém colhidas. Uma delas havia machucado sua mão branca. Um espinho pontiagudo. Ele parecia não sentir dor. Não percebia o sangue. Olhou pra mim curioso. Deve ter pensado o que essa mulher está fazendo no meu jardim? E ainda encolhida no canto, junto ao muro baixo... Então se aproximou devagar. Não perguntou nada. Apenas estendeu a mão que não estava sangrando. Seus olhos eram de pai. Mas recusei, receosa, com um leve balançar da cabeça. Ela agachou-se. Tocou-me o rosto com cuidado e disse, num tom azul de falar, que não precisava mais ter medo. “Vou curar suas asas”. Meu Deus, o que era aquilo? Aquele homem vestido de anjo ali, pronto pra me salvar de minhas bruxas infernais. Senti um profundo desejo de sorrir e abraçá-lo. Entregar-me a ele, por completo. Ser o tudo. Ver a vida. Sentir, enfim, sentir a plenitude. Mas não foi isso o que fiz. Tenho até vergonha de contar. Mas mais uma vez me deixei seduzir pelo medo. Fui agarrada por ele. Apoderou-se de mim, assim que percebeu o que acontecia ali. E eu já estava tão acostumada com seus argumentos sórdidos, que ele nem precisou se esforçar. E, tomada daquele sentimento atenuante e infeliz, encolhi-me e apertei os olhos. Lágrimas escorreram. Então, de olhos fechados levantei-me. Apalpando o muro, pulei para a rua deserta e corri sem rumo. Pronta pra encontrar mais uma bruxa. Mas aquele anjo não desistiu de mim. Assim que olhei para o céu. Percebi suas asas grandes sobre minha cabeça. Senti-me contente por ele não ter desistido de mim. E foi naquele minuto quente que comecei a experimentar um pequeno formigamento em uma de minhas asas. Sorri, então. Mesmo avistando de longe uma das minhas bruxas. Resolvi parar de correr. Não me escondi. Tomada de uma coragem nova, fui até a bruxa devagar, com calma. Ela me olhou assustada, quem diria... Então a convidei pra um café, ali no bar da esquina mesmo. E, acredita que ela aceitou? Tivemos uma conversa tão boa e demos tantas risadas juntas, que de repente achei que ela tinha cara de fada. E prometeu me apresentar para a sua turma. Assim que nos despedimos com um abraço verdadeiro, depois de trocarmos e-mail e celular (ela tem até um blog!!!), abri as asas, com naturalidade. E voei, pela primeira vez.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Era uma vez nos anos 80

Éramos uma turma. Amigas-irmãs. Cúmplices comprometidas, metidas e destemidas. Meninas desvendando a galáxia e partilhando estrelas. Histórias encantadas. Contos de fadas escritos em um diário adolescente. Sorrisos felizes, lágrimas sinceras e sonhos acordados. Emoções coloridas compartilhadas em descobertas singulares. Delírios e colírios. Nascer do sol, sol poente e festa ao luar. Um mundo mágico e fugaz: presente da lua. Drinks ao piano, novos amigos. Dançar no fim de semana. Amores efêmeros com sabor de eterno enquanto dure. Estepolias fabulosas. Riso, choro, frio, calor, bonito, feio, claro, escuro, doce, amargo. Sentimentos recortados e costurados: pedaços preciosos de pano tecido com o melhor de nosso algodão. Colcha de retalhos, guardada e amarrotada, mas que ainda esquenta os meus frios. Faça chuva, faça sol.