quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Em branco

Sabe, fui procurar ajuda nos casarões da rua ao lado da minha. Mas, lá encontrei algo que nunca soube. Uma exposição de quadros em branco. Sim. Isso mesmo. Não há, meu caro, descrição mais franca e honesta: se posso ser mais precisa, acrescentaria grande e, talvez, profundo. Sim, era um grande e profundo branco. Mas, se queres mesmo mais detalhes, posso adentrar ali naquela coisa alva pra saber sua real textura. Sabe, tenho um pouco de receio desse negócio. Entrar em quadro é surreal, eu sei. E é justamente isso que alimenta a alma de quem vive de sentir, na sutileza do imenso poder que nos concede a essência da arte. Do ser. Simples e acabado. Ser por querer ser. E ponto. Volto ao meu quadro branco, que continua a me tentar. Entrei. E foi fácil. Bastou botar um pé, depois o outro. O corpo veio devagar e pronto. Cá estou neste branco, que agora está ainda mais cândido. É até bonito à primeira olhada. Diferente e estranho. Mas atraente. Ofusca um pouco os olhos, que doem de tanta brancura. Sinto-me um pouco molenga e pesada. Aqui é tudo pastoso, melado. Os movimentos são difíceis. E as dificuldades ficam cada vez mais ansiosas. A sensação é de sonho bizarro. Tentar correr e não sair do lugar. Travar a boca e sentir amolecer a mandíbula. Devia ter trazido as tintas, mas deixei-as encostadas muito tempo e endureceram. Agora os olhos lacrimejam. É impossível não chorar. Tristeza branca. Além de mim, nada. Apenas este bendito-maldito branco. Bonito e provocante. Cruel e invejoso. Rouba os sonhos e as vontades. Leva as sensações. Lava os sentimentos. Esfria os sentidos mais singelos. Deixa um nada que não se acaba. Nem acende, nem abranda. Age com a perpetuidade da ausência. Maldita lacuna. Sinto-me anular. Oca no vazio da omissão. Mais com menos é menos. Nunca entendi isso direito nas intermináveis aulas de matemática que tanto detestava. Agora compreendo, mas também está esvaziando. Tudo que vem, vai. Rápido na lentidão, vejo desistir. Sim, o abandono extasiado na ausência de cor e cheiro e som e tato e sabor e humor e calor e pudor e pavor e amor. O repúdio instala-se assim. Resta o vago vazio de tudo, que é nada. Sim, no raso mais profundo do nada, o tudo se fez alheio.